Capítulo I




1



Só depois de ter pago o primeiro mês de renda ao senhorio e de este se ter despedido de forma seca e breve é que me dediquei a ver o novo apartamento com atenção. Se houvesse alguma coisa realmente desagradável com a casa que acabara de alugar eu já não teria hipóteses de recuperar o meu dinheiro. E como não tinha disponibilidade financeira imediata para arrendar outra, teria que viver ali pelo menos durante um mês.

Foi com espírito construtivo, por isso, que me pus a olhar para o que me rodeava. A sala de estar, que também servia de hall de entrada, era ampla, alcatifada de azul e as paredes estavam impecáveis. Depois, havia uma passagem para um quarto de dormir com duas janelas que, por sua vez, ligava a outro só com uma abertura para o exterior. A casa não tinha portas a separar as divisões. À esquerda da sala de estar ficava a cozinha. Já não me recordo onde se situava exactamente a casa de banho, mas, segundo a lógica, só podia ser por baixo da escada comum que conduzia ao andar de cima, mesmo ao lado da pequena cozinha.

Era assim o primeiro apartamento que aluguei. Móveis não havia e eu também não os possuía. No carro que estacionara três andares abaixo, tinha um colchão, dois pares de lençóis, um ou dois cobertores, meia-dúzia de pratos e talheres trazidos de restaurantes, para além da minha roupa pessoal.

Da zona onde alugara o apartamento, não sabia se era boa ou má. Nem me preocupara em apurar. Acabara de chegar à cidade, sem qualquer noção sobre o Norte, o Sul e o resto.

Combinara encontrar-me com o senhorio no local que ele me indicara e chegara lá, às apalpadelas. Nos semáforos, aproveitara para ir perguntando às pessoas que atravessavam as passadeiras onde ficava a rua tal e depois fora-me safando com manobras por entre as centenas de carros que surgiam das transversais como se para me abalroar.

A dada altura, furiosa com uma das minhas demoras em arrancar num semáforo verde, uma mulher taxista atarracada saiu de dentro da sua viatura e veio com gestos ameaçadores na minha direcção. Para mostrar que não a temia, saí também do carro e mandei-a para a outra banda. A taxista não esteve com meias medidas. Ofendida pelas minhas palavras, deu meia volta, entrou no táxi e voltou a sair, armada com uma barra de ferro, desatando a correr para mim com a mão bem erguida ao alto. Não perdi tempo a pensar. Meti-me no carro e acelerei a toda a força sob o buzinão de uma fila de veículos que se tinha formado atrás do táxi. Só segundos depois me dei conta de que a precipitação em escapar à taxista me fizera passar o semáforo vermelho, provocando travagens forçadas numa quantidade de veículos que atravessavam a grande velocidade na minha frente. Nem me atrevi a olhar para trás, a ver se tinha causado algum acidente. Acelerei sempre.

Dois ou três quarteirões adiante tive consciência do que acabara de fazer. Senti um constrangimento no peito, mas continuei. Tinha escapado mais uma vez. Até àquele momento, escapara sempre. Habituara-me a medir o risco das situações, abrindo caminho a qualquer preço. Faltava-me saber o que seria de mim na próxima ocasião em que o perigo se atravessasse à minha frente sem piedade.





2



Meia hora depois de ter alugado o apartamento, já tinha esvaziado o carro e disposto as minhas coisas nos lugares certos. Só o colchão, que pusera no quarto de dormir principal, não me parecia estar no sítio mais indicado. Coloquei-o junto a uma das janelas, mas pareceu-me demasiado exposto à claridade e aos olhares da vizinhança. As cortinas acabavam por fazer falta. Só que eu não tolerava cortinas. Provocavam-me asfixia, deixavam-me sem visibilidade para o exterior, eram uma espécie de prisão.

Pus o colchão no meio do quarto e depressa concluí que naquela posição eu ficaria com os movimentos prejudicados.

Experimentei colocá-lo entre as duas janelas e dei-me conta de que a exposição à luz e à curiosidade da vizinhança ainda seria maior do que na primeira posição.

Tinha já tomado a decisão de o levar para o quarto contíguo, que era mais pequeno e só com uma janela, quando descobri o lugar que me parecia perfeito: encostado à parede interior, que separava o quarto principal da sala de estar.

Contente pela solução encontrada, estendi-me na cama e respirei fundo. Podia parecer uma questão insignificante, mas a posição de uma cama tinha a ver com a forma de cada um estar na vida durante oito horas por dia. Não se podia menosprezar a existência durante tão longos períodos de tempo. Ainda por cima quando se sabia que o sono era fundamental para retemperar forças.

Pus-me a divagar, enquanto olhava as paredes nuas do quarto em que acabara de me instalar e, de repente, lembrei-me que um colchão encostado à parede limitaria os movimentos de duas pessoas. Uma delas, ao abrir as pernas, ou os braços, podia até acabar por se magoar. A que ficasse do lado de dentro da cama nem teria garantida a segurança da cabeça na hipótese de ser vítima de sono agitado.

Levantei-me e reexaminei a situação. Para evitar o trabalho de arrastar o colchão para um lado e para o outro, sem estratégia pré-definida, coloquei-me à entrada do quarto e estudei todas as posições teóricas possíveis de colocar uma cama de pessoa só num quarto amplo, com duas janelas para o exterior e duas passagens para outros quartos.

Uma das soluções que me agradava era colocar o colchão junto ao tecto durante o dia, de forma a deixar todo o espaço livre, e baixá-lo à noite para dormir. Mas isso implicaria a construção de um complexo mecanismo de cordas e roldanas que ultrapassava a minha disposição na altura. Tudo o que obrigasse a trabalhos que eu não pudesse realizar naquele preciso instante estava excluído da minha agenda. Por isso, não tive outro remédio senão devolver o colchão a uma das posições anteriormente rejeitadas – entre as duas janelas. Era o desenlace mais óbvio. Expor-me-ia aos olhares da vizinhança, mas nem por isso deixaria de fazer o que muito bem me apetecesse. Até porque eu tinha o costume de andar sem roupa dentro de casa e, mais tarde ou mais cedo, as pessoas dos prédios contíguos aperceber-se-iam disso.





3



Voltei a deitar-me e fiz mentalmente contas ao dinheiro que me restava. Talvez nem desse para ingerir uma sopa numa das tascas das redondezas. Mas comer era o menos. O importante era conhecer pessoas. Mais dia menos dia, havia de fazer algumas amizades. Alguém que encontrasse na rua, um homem que me pedisse uma informação sobre um sítio qualquer, uma mulher que tivesse acabado de chegar à cidade como eu, um jovem mais conversador que podia apresentar-me a um primo ou vizinho...

Depois, havia de telefonar a quem tivesse mais a ver comigo e convidá-lo-ia a aparecer no meu novo apartamento. Essa pessoa traria companhia e alguma coisa para comer. Faríamos uma festa e a noite passaria depressa.

A casa que eu alugara estava completamente desprovida de mobília, mas isso era menos importante do que o prazer que o convívio havia de proporcionar. Ninguém levaria a mal o meu desapego pelo conforto banal do dia a dia. Além de que uma casa vazia era bem mais aliciante do que uma casa cheia, porque dava a liberdade a quem nela residia de fruir o espaço como melhor entendesse. Uma casa vazia tornava possível sonhar com os objectos de que poderia vir a ser recheada no futuro, ao passo que uma casa cheia não deixava lugar a mais nada. Quando apetecesse adquirir um móvel novo, seria necessário prescindir de um velho, o que acabaria por constituir um desgosto para quem se afeiçoava às coisas. Perder um móvel ou um objecto qualquer, mesmo que sem utilidade, poderia magoar tanto como perder uma pessoa. Colocando-nos no lugar do objecto rejeitado, era como se deixássemos de fazer sentido, como se ninguém gostasse de nós, como se passássemos na rua e não se desse pela nossa presença. Depois de se viver durante anos em contacto próximo com determinadas coisas, acabava-se por depender delas como de um fio que nos liga à vida.

Por isso, a melhor forma de eu sobreviver, parecia-me, era nunca ter nada, para não me afeiçoar às coisas. Ou ter quase nada, para me afeiçoar a pouco. E esse pouco tinha que ser sempre algo que eu pudesse transportar sem esforço para todo o lado. Procedendo desta maneira, nunca ficaria dependente de nada, nem jamais sentiria falta do que quer que fosse. Não poderia haver melhor – nem maior – liberdade.

Os móveis de uma casa eram objectos insignificantes, corriqueiros, que podiam ser substituídos com facilidade, e fazia-me impressão que alguém – incluindo eu – pudesse ficar ligado a eles pela sensibilidade, pelo afecto, pelo sentido de posse. Esse tipo de ligação ao irrisório inquietava-me, desassossegava-me, assustava-me. No fundo, os afectos perturbavam-me. Por mais que o tentasse desmentir, via o amor como uma ameaça. O que fazia com que as minhas relações fossem esquivas, quer as estabelecesse com pessoas ou coisas. Na prática, abandonava umas e outras com facilidade.

Os objectos tinham memória, tinham alguma coisa a ver com quem os fabricava ou simplesmente utilizava, mas eu não pretendia fazer deles elementos fundamentais do meu dia a dia. A mobília de uma casa era absolutamente dispensável. Se aceitava conviver com pessoas era por recear que a solidão me conduzisse à loucura. E se procedia dessa forma era porque sabia que, a qualquer momento, me afastaria de quem quer que fosse, desapareceria, partiria para outra, sem remorsos nem explicações, num claro desafio ao que me esperava. Para recomeçar tudo, indiferente ao que deixara para trás. Fazia novas amizades ou recuperava antigas. Nunca alimentava as mesmas por um longo período de tempo. Comigo, tinha que haver sempre cortes, rupturas, afastamento. Assim, ia controlando os afectos, em vez de me deixar dominar por eles.

Enquanto estava num lugar, porém, eu procurava sempre fazer com que os amigos se sentissem à vontade na minha companhia. Esse era um dos segredos. Queria-os perto de mim, embora nunca estivesse perto deles. Às vezes, nem os ouvia. E desatava a rir para que não percebessem que eu pensava noutras coisas enquanto falavam. Num espaço vazio, podiam sentar-se ou deitar-se no chão, vaguear pelos quartos, utilizar a cozinha ou a casa de banho conforme lhes apetecesse, sem qualquer tipo de inibição. O meu desejo era que fossem iguais a eles próprios, não utilizando o recheio da casa para se esconderem ou mascararem. Numa casa vazia, as suas palavras, risos, comentários, ideias, teriam mais eco e dariam a conhecer melhor a alma de cada um.





4



Vivi com falta de dinheiro durante bastante tempo. Não era capaz de amealhar duas moedas. Gastava tudo o que tinha em poucas horas ou dias. Quando não aparecia ninguém com quem partilhar a miséria, e se me apetecia comer alguma coisa, descia à rua, entrava numa das cervejarias da zona e dirigia-me à casa de banho. Por entre a confusão da clientela que se aglomerava junto ao balcão, era fácil surripiar de passagem uma sandes, um rissol, um ovo cozido. Havia dias em que tinha sorte a dobrar – surripiava quando entrava na casa de banho e surripiava quando saía!

Certa vez, ao terminar um dos meus almoços rápidos num dos estabelecimentos que mais frequentava, parei no quiosque de jornais habitual e pedi um para consultar a secção de empregos. A velhota já conhecia a minha situação de penúria, por isso, concedia-me aquela facilidade.

Um dos sonhos que eu alimentava desde há muito tempo era o de ser guarda florestal numa ilha deserta. Mas achava que ainda era cedo para o fazer. Não era fácil viver em completo isolamento. Acabei por abandonar a ideia, com a certeza de que os anos me esclareceriam.

Havia muito por onde escolher. Eu não me importava de servir à mesa num restaurante, fazer traduções, desempenhar tarefas num escritório. E sentia que, antes do fim do mês, teria emprego garantido, a fim de poder pagar a minha nova renda.

Embora uma coisa nada tivesse a ver com a outra, eu descortinava uma forte relação entre a facilidade que tivera em descobrir apartamento e a facilidade que teria em arranjar emprego. O normal seria alugar apartamento só depois de ter uma actividade profissional definida, mas eu considerava que se alugasse apartamento primeiro, depois me seria mais fácil conseguir emprego. Se procurasse emprego antes do apartamento, corria o risco de desistir das duas coisas – do emprego por cansaço de o procurar e do apartamento por não ter emprego que me permitisse ganhar dinheiro para pagar a renda.

Estava diante do quiosque com o jornal aberto na minha frente a consultar as dezenas de anúncios, quando notei que havia alguém a dois ou três metros de distância que me fixava com insistência. Fingi não ver o que se passava, dei dois passos atrás na direcção da parede, olhei para o outro lado, mas nada. Sempre que baixava os olhos para o jornal, reparava que um homem não tirava os olhos de mim. Cheguei mesmo a corar, só de pensar quem seria, o que desejaria aquele indivíduo, o que estaria por dentro do seu olhar fulminante, o que me aconteceria se tivesse alguma obscura intenção. Ter-me-ia visto sair da cervejaria sem pagar?...

Voltei ao quiosque para devolver o jornal à velhota e quando me preparava para ir embora, senti um toque no ombro:  Olha quem aqui está!

Durante uns milésimos de segundo hesitei entre fugir ou encarar o homem. A segunda hipótese venceu, embora a custo.

Já não te lembras de mim?  perguntava o intruso, olhando-me de forma intensa, à espera que eu descobrisse o seu verdadeiro rosto por trás das sombras da idade.

Ao notar a minha perplexidade, ele não foi capaz de se conter:  Sou o Ralph!  E perante o meu olhar vítreo e confuso, continuou:  O Ralph! Ralph Pike! Andámos juntos na escola...

Por mais que eu o fixasse, não conseguia descobrir as suas feições antigas. A pessoa que me enfrentava tinha óculos e bigode, o que devia alterar radicalmente a sua expressão de infância. Por isso, as minhas contas mentais não batiam certas.

A frase – “andámos juntos na escola...” – ecoou-me aos ouvidos duas e três vezes, sem que eu fosse capaz de identificar a pessoa que tinha à minha frente. O meu bloqueio era total.

A certa altura, por breves segundos, tive uma vaga ideia acerca de quem se tratava, mas o facto de não conseguir asssociar o seu rosto actual ao antigo ainda me confundiu mais. E a ideia vaga desvaneceu-se de todo.

Primo da Debby?...  perguntei, com medo de falhar, embora sabendo que não tinha nenhuma hipótese de acertar.

Debby? Quem é a Debby?  retorquiu ele, com ar de quem acabara de chegar de outro planeta.

Não sabendo como proceder numa situação daquelas, e receando provocar algum equívoco de conseqüências imprevistas, disse-lhe que estava com pressa e que para a próxima falaríamos melhor, enquanto me ia afastando, de costas, para dar ideia do meu interesse em continuar a falar com ele e que se não o fazia naquele momento era porque as obrigações me levavam a não poder ficar por mais tempo. Na despedida, por entre encontrões e pedidos de desculpa de pessoas que passavam em todas as direcções, ele fez um derradeiro esforço e estendeu-me um cartão, com a sua morada e telefones. Num último relance, tive ainda oportunidade de o ver levantar um braço e dizer qualquer coisa que se perdeu por entre a confusão da tarde azul, mas nada me faria voltar atrás. Da próxima vez que o visse, aquele braço no ar já estaria esquecido.





5



Passados vários dias, telefonei a Ralph. Fi-lo com a secreta esperança de que ele, o pai ou algum tio soubessem de um emprego para mim. Nunca lho pediria directamente, mas o assunto podia sempre surgir no meio de duas conversas.

Ralph chegou ao meu apartamento por volta das onze da manhã, acompanhado por uma jovem que não parecia manifestar interesse por nada do que se passava à sua volta. Nem por mim, nem pelo apartamento, nem pelo próprio Ralph. Dava a ideia de ter vindo por obrigação. Mais tarde, soube que se tratava de uma prima que estava de passagem em casa dos pais e que ele trouxera para dar uma volta pela cidade.

Enquanto Ralph e eu trocávamos as primeiras impressões, ela encostava-se à parede de pernas cruzadas, procurava uma posição para os braços, suspirava e ajeitava o cabelo curto castanho aos caracóis sem nunca emitir palavra.

A primeira coisa que Ralph disse quando entrou foi:  Daqui a bocado vamos almoçar aí a um sítio que conheço...  parecendo querer deixar claro com a sua intenção que não pretendia ir-se embora tão cedo. Se calhar, dali a uma ou duas horas, não voltaria a falar no almoço, mas afirmara-o logo de entrada para marcar um estilo.

Ralph era basicamente estilo. Apenas isso. O resto não contava. Porque não era sólido. Tanto podia ser uma coisa como outra. Durante uma conversa, o meu antigo colega tomava todas as posições possíveis. Fazia-o, precisamente, para marcar um estilo. Deste modo, como eu viria a comprovar mais tarde, ele acabava por agradar a todos, ao mesmo tempo, gregos e troianos, velhos e novos, mulheres e homens.

Quando Ralph falou em almoçar fora, senti um enorme embaraço porque teria que lhe colocar o meu problema de falta de dinheiro, pedindo-lhe que me pagasse a refeição. Mas reconheço que o que mais me constrangia era ter que abordar o assunto diante da prima.

Quando tencionas mudar-te para cá?  perguntou Ralph, olhando a casa vazia e concluindo, precipitadamente, que eu ainda não me instalara.

Respondi-lhe que já vivia na casa, que estava perfeitamente a meu gosto. O que estava à vista era tudo o que desejava e tudo o que possuía.

Não gosto de casas com móveis até ao tecto  expliquei, enquanto reparava na expressão da prima que, pela primeira vez, dava a ideia de prestar atenção à conversa.

Ralph desatou a rir com a minha resposta e disse que conhecia uma loja com móveis jeitosos e baratos.

Fiz de conta que não percebera a insinuação e, logo a seguir, ele pôs-se a andar pela casa, com ar de quem pretendia espiolhar todos os recantos.

Se quiseres um parceiro, não me importo de dividir o apartamento contigo  acrescentou, antes que eu tivesse tempo de adivinhar o que lhe ia na cabeça.

Respondi-lhe de forma evasiva, por não ter a certeza de a proposta me interessar. Apesar de a sua forma de estar não me incomodar, sentia que ainda era cedo.

Para descongestionar o ambiente, perguntei se queriam café. Decidimos tomá-lo fora.

À saída do prédio, entrámos no carro de Ralph, que arrancou e nunca mais parou, nem para tomar café, nem para almoçar. Passámos a tarde às voltas pela cidade, com a prima sempre muda no assento de trás (embora sem nunca dar ares de aborrecimento), enquanto o meu antigo colega me ia mostrando ruas, edifícios históricos, praças, avenidas, centros comerciais, estádios de futebol, discotecas, cinemas...





6



Depois de estar com Ralph e com a prima, passei a sentir que o meu apartamento tinha falta de algumas soluções elementares, como uma mesa na cozinha, três ou quatro cadeiras, quadros nas paredes. Por pouco dinheiro que tivesse, podia sempre arranjar formas imaginativas de decorar o espaço em que vivia.

Agora, já não tolerava o colchão ao pé das duas janelas. Parecia-me impossível que tivesse sido eu a colocá-lo ali. Só alguém desprovido de qualquer flexibilidade interior o teria feito. Era evidente que ficava muito melhor junto à parede que dividia o quarto de dormir da sala de estar porque tornava o espaço mais amplo. Quando aparecesse quem quisesse dormir comigo, o colchão podia sempre ser empurrado para o meio do quarto.

Olhando para a sala de estar, pareceu-me que seria bastante preferível decorar-lhe as paredes. Não fazia muito sentido que, ao entrarem em minha casa, as pessoas batessem com os olhos numa superfície nua.

Depois de me pôr a andar em círculos, puxando pela cabeça, concluí que podia comprar umas reproduções baratas de artistas plásticos consagrados, mas não achei que aquela solução tivesse alguma coisa a ver comigo. Além de tudo, eu detestava fazer com que as coisas esperassem. Ou eram feitas no momento, ou acabava por esquecê-las. E, naquele instante, não dispunha de um centavo para comprar uma reprodução que fosse. Nem para comprar tintas ou tela, se por acaso quisesse resolver o assunto com as minhas próprias mãos.

Só me restava a imaginação. Ao abrir o roupeiro, dei com umas calças de ganga que nunca chegara a usar e, por entre um monte de coisas, descobri umas botas certa vez compradas por engano.

Não demorou muito até que estivesse tudo afixado na parede, com a ajuda de uns pregos enferrujados que tirei de um armário velho da casa de banho e de uns restos de rolo de fitacola. As calças de ganga ficaram em posição diagonal no centro da parede, enquanto as botas foram dependuradas cada uma do seu lado, como se alguém tivesse acabado de ter um acidente e aquelas peças tivessem ido parar ali por acaso. A construção dava um aspecto inquietante à casa. Qualquer pessoa que lá fosse não deixaria de fazer perguntas sobre o seu significado. E era isso que eu queria, que me interrogassem, que me explorassem, que me vasculhassem, a fim de eu poder testar a resistência da muralha que me cercava.

Descontente com a obra realizada, esperei que anoitecesse e fui procurar nas redondezas alguma coisa atirada para o lixo, mas que depois de transferida para outro contexto pudesse ter algum valor.

Trouxe para casa um tubo de escape que encontrei caído ao lado de um velho automóvel sem dono. Ainda pensei escolher um dos assentos, mas depois de reflectir, preferi o tubo de escape, por me parecer que o metal, embora enferrujado, teria outro impacto.

Bastaram-me dois pregos para colocar o tubo na parede mesmo em frente ao colchão.

Senti-me feliz. E, finalmente, descansei. Sem nada que me afligisse, nessa noite, deixei-me estar alerta durante horas, só para me comprazer a imaginar as conversas que aquele estranho tubo de escape despoletaria entre duas pessoas que estivessem deitadas no meio de um quarto, sem sono, olhando a parede pelo tempo fora...





7



Durante a maior parte dos dias em que nada tinha para fazer, ocupava a rotina a pensar ou a mexer nas poucas coisas que me rodeavam. Eu já mudara o colchão de sítio uma dezena de vezes; numa das pernas das calças que pregara na parede acrescentara uma camisa castanha, criando um enchumaço; e dentro de uma das botas pusera uma vela que encontrara por cima de um dos armários da cozinha. A sala de estar havia sido enriquecida por dois bancos, que eram na prática dois troncos de madeira que eu descobrira perto de uma serragem e que enfiara à pressa no porta-bagagem do carro, em plena luz do dia.

Com o tempo, o meu apartamento ia ficando recheado, sem que se pudesse dizer que deixara de estar vazio. Tudo era nudez entre as quatro paredes que me abrigavam, ao ponto de me parecer que a casa ficara muito mais despida e fria do que no dia em que eu a alugara. O meu espaço não se assemelhava a nada do que eu já vira antes.

Quando aparecesse alguém para me visitar, agora, eu já sentia mais segurança. E a forma como decorara a casa sempre havia de constituir motivo de conversa quando não houvesse nada para dizer ou quando não interessasse tocar em certos assuntos.

Certo dia de manhã, levantei-me, e percebi que era melhor descascar os troncos de árvore, para evitar que alguém sujasse a roupa quando lá se sentasse. Não perdi tempo e executei a tarefa com as próprias mãos e com a ajuda de uma faca, o que não se revelou difícil, porque a madeira estava mais do que seca. Nessa altura, reparei que tinha a sala cheia de formigas e de bicharocos, que avançavam pela alcatifa como minúsculos peixes vindos à tona de água.

Pus-me a matá-los ao pontapé, com um enervamento desusado, tentando impedir a invasão dos meus aposentos. Contudo, quantos mais bichos e formigas matava, mais bichos e formigas apareciam por entre a penugem rala da alcatifa. Multiplicavam-se de forma inexplicável como na criação de um novo mundo que vinha abusivamente alterar a tranquilidade dos meus dias. Pensei comprar à pressa um insecticida qualquer, mas desisti da ideia por achar que não seriam aqueles minúsculos seres repelentes que me obrigariam a gastar as últimas moedas.

Decidi não desarmar na legítima defesa dos meus redutos enquanto não desse cabo daquele exército até ao último intruso. Só que a precipitação de eliminar a bicharada me impedia de perceber que boa parte das minhas arremetidas falhavam o alvo porque os bicharocos, de tão pequenos que eram, encontravam protecção entre os pêlos da alcatifa. O que também significava que o exército inimigo era mais numeroso do que eu inicialmente calculara.

Quando pensei que havia ganho o combate, por fim, e me dirigi para o duche da casa de banho, verifiquei que muitos dos bichos que eu pensava ter liquidado se haviam refugiado nas outras divisões da casa. Fora de mim, peguei numa toalha, enrolei-a e pus-me a bater em tudo o que era chão e parede, à esquerda e à direita, sem dó nem piedade. Nem que tivesse de esventrar a casa toda, não perderia aquela batalha.

Em último recurso, fiz a opção desesperada de encher baldes de água e vazá-los por cima de formigas e bichos. Sem noção das conseqüências do meu acto, só acordei para a realidade quando ouvi uns toques valentes na porta. Inerte, de balde na mão, procurei antecipar o que podia estar a acontecer. Fui abrir a porta e dei de caras com um homenzarrão, armado de caçadeira, que dizia morar no andar de baixo e ter a casa encharcada de água.





8



Se havia alguém que eu nunca imaginara que um dia me pudesse entrar pela casa dentro era a prima de Ralph Pike. Mas foi isso que aconteceu um dia depois de ter visto a minha casa invadida por milhares de formigas, o que me ia custando a vida às mãos do vizinho de baixo, que só não fez uso da caçadeira ante a minha repetida promessa de lhe pagar integralmente os danos causados pelas infiltrações.

Ouvi bater à porta e, ao abrir, deparei-me com a prima de Ralph. Ainda hoje não sei o seu nome. Para mim, foi sempre a prima de Ralph. Vinha de saia curta e blusa fresca, com uma pequena mala pelo ombro. Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, ou que de repente se arrependesse e fizesse marcha atrás, convidei-a a entrar. Reparei que fixou prontamente os olhos na minha decoração das calças de ganga e das botas pregadas na parede.

A tua casa está muito diferente!  disse, fazendo com que eu ouvisse, pela primeira vez, a sua voz, de timbre rouco e pausado. Disse aquilo e ficou especada a olhar, tentando compreender-me à luz das conversas que me ouvira ter com o primo no dia em que lá fora com ele.

Entretanto, eu fechara a porta e convidara-a a sentar, quando me lembrei de que a alcatifa ainda estava molhada do dia anterior. Avisei-a, quando ela já cruzava as pernas para se sentar. Retesou-se logo, com um “ai” nervoso, e fugiu para a cozinha, como se temesse pela sua segurança.

Descansei-a, dizendo que apenas estivera a lavar a casa e que a alcatifa ainda não tivera tempo de secar. Vi o seu rosto descontrair-se, com um sorriso largo, e pôr-se a andar pelo apartamento, a pretexto de admirar as minhas decorações. Todavia, notava-se um ligeiro retraimento em cada passo que dava. Não era como o primo, que avançava de forma descarada em direcção ao desconhecido.

Vendo que ela ficara paralisada a olhar o tubo de escape que eu tinha afixado na parede do quarto de dormir, sugeri que se sentasse no colchão, o único lugar seco e confortável de que eu dispunha naquele momento.

Ela obedeceu, parecendo mesmo ter ficado mais à vontade a partir de então.

Conversámos sobre a importância do metal no quotidiano, sobre o significado do automóvel nas sociedades modernas, sobre o efeito pernicioso dos gazes lançados para a atmosfera.

O tubo de escape, realmente, fora a escolha perfeita para a decoração do meu quarto de dormir. Porque dava para falar acerca de tudo, permitindo, ao mesmo tempo, que se mudasse de conversa com uma facilidade estonteante. Era um tema altamente escorregadio e imprevisível.

A prima do Ralph entrara, provavelmente de forma inadvertida, na vertigem de um carrossel sem tempo de cronometragem, uma espécie de corrida automóvel sobre piso molhado. À medida que falava comigo sobre as ideias que o tubo de escape lhe trazia à mente, ia ficando cada vez mais desinibida, ao ponto de deixar que eu lhe colocasse uma almofada por trás das costas, sobre a qual se reclinou com naturalidade, movimento que fez com que o nível da saia lhe subisse para o alto das pernas macias.

Não me recordo das palavras que dissemos, nem do que pessoalmente senti, muito menos imagino o que lhe passou pela cabeça. Foi uma força estranha que se apoderou de nós, em simultâneo, e que nos arrancou do espaço onde nos encontrávamos, levando-nos a perder a noção de tudo à volta.

Ao fim de mais de duas horas..., ela levantou-se e saiu sem grandes despedidas nem promessas. Senti que algo acontecera, mas nunca pensei que não voltaria a vê-la.

Dois dias depois, telefonei e falei com a mãe do Ralph. Mantivemos uma conversa cordial, que não demorou mais de uns breves segundos, o bastante para eu ficar a saber que a prima do Ralph não desejava voltar a ver-me. Logo a seguir, o telefone foi desligado sem me dar tempo ao menos de gaguejar ou tentar descobrir os motivos de tal decisão.





9



Tudo se precipitou a partir daí. Ao fim de quase duas semanas no meu novo apartamento, eu não arranjara emprego, provocara uma inundação (que me comprometera a pagar) no andar inferior e a pessoa de quem mais me aproximara não queria saber de mim para nada.

Telefonei a Ralph na tentativa de apurar se ele estava ao corrente da situação, se sabia novidades, se porventura tivera alguma conversa com a prima que pudesse contribuir para o meu esclarecimento. Não notei qualquer diferença na sua voz e tive a garantia de que ele me apareceria naquele mesmo dia.

Esperei em vão, durante horas. No dia seguinte, continuei a não ter sinal dele. Recebera o aviso de que não devia abusar dos telefonemas para sua casa, por isso, não voltei a contactá-lo.

Tinha que encontrar uma solução imediata para a minha vida. Mudar de casa era o que me restava fazer. Recomeçar do zero. Acontecesse o que acontecesse.

O primeiro apartamento que eu alugara por conta própria pouco ou nada adiantara ao caminho que eu teria de trilhar. Não me sentia propriamente fracassar, mas sabia que a única forma de evitar esse destino era continuar em frente. Como nos semáforos, independentemente de estarem vermelhos ou verdes, avançar era uma obrigação, mesmo que os olhos nada vissem ou pressentissem. Enquanto eu corresse, embora desconhecendo o que encontraria na esquina mais próxima, ao menos não teria tempo de admitir perante mim a derrota ou a inutilidade.

Correr sem objectivos era o que contava para a avaliação do meu próprio desempenho. Não interessava quanto tempo demoraria a chegar a algum lado. O importante era não desistir. Mesmo que nunca atingisse coisa alguma, havia de correr sempre. Bastava-me correr para sentir os dias palpitarem à minha volta. A minha prioridade consistia em desafiar todos os que procurassem identificar-me, reconhecer-me, aceitar-me. Era uma maneira de não me distrair, de não me desviar, de me manter fiel a qualquer coisa que eu ainda não entendia, muito menos adivinhava.

Esperei até à meia-noite que Ralph aparecesse. Mas nada. Em vez de me desapontar, dediquei-me a analisar a situação numa perspectiva em que a mudança de casa me provocava uma euforia desmesurada. Pus-me a andar de quarto em quarto, como se a despedir-me, vendo-me já noutro sítio, com outras janelas, outras paredes, outras cores.

Restava-me um cheque. Recorreria a todos os argumentos para convencer o novo senhorio a esperar quinze dias antes de o trocar.

Sem perder tempo, desatei a amontoar as minhas coisas na sala de estar, junto à porta de saída, sem esquecer o tubo de escape, que enrolei num cobertor, para não dar nas vistas. Os troncos carunchosos ficariam a servir de pasto para a bicharada.

Na manhã seguinte, logo de ouvir o inquilino do andar inferior descer as escadas para ir trabalhar, apressar-me-ia a encher o carro, desaparecendo dali para fora de uma vez por todas, com a missão imediata de alugar o primeiro apartamento que encontrasse disponível.

De costas sobre o colchão, ainda demorei algum tempo a adormecer, tal a excitação que sentia pelo que viveria nas próximas horas. Se não fosse fácil conseguir um novo apartamento, eu poderia sempre ir bater à porta de Ralph pedindo-lhe que me deixasse ficar em sua casa por uma noite. Em último caso, tinha o carro.

Também pensei que, em vez de dormir no automóvel, podia estudar a hipótese de recorrer à pouca família que me restava, por um período de tempo que me permitisse retemperar forças. Seria uma violação da minha regra de nunca recuar um milímetro, mas não haveria mal em ser flexível uma vez por outra. Todavia, afastei semelhante cenário. Para trás de mim, havia uma dor tão grande que eu só podia superá-la mudando de cidade, afastando-me de parentes e amigos, esquecendo tudo de vez e desatando a correr para a frente, em várias direcções ao mesmo tempo, sem me preocupar em escolher esta ou aquela. Do meu passado, não restava qualquer sinal de brilho ou luz. Só a sombra colossal de uma esfera negra sem nome.











Capítulo II





1



Conheci Mervin num café, rodeado de amigos barulhentos, que riam por tudo e por nada. Vendo-me só numa das mesas, diante de uma chávena de café desde há horas abandonada pelo cliente que me precedera, convenceram-me a puxar a cadeira para junto deles. Devia meter-se pelos olhos dentro que eu estava ali sem saber o que fazer.

Faziam parte de um grupo musical de bairro e divertiam-se a contar peripécias de concertos e noitadas.

De vez em quando, Mervin voltava-se para um dos que estava a seu lado e dizia:  Sol, fá, mi, ré, dó..., olha o meu popó!  provocando risos histéricos entre os presentes.

Para não destoar do ambiente, eu desatava a rir, também, o que os deixava visivelmente satisfeitos. A facilidade com que aderi à galhofa e às histórias que contavam fez com que não demorasse muito tempo para que me considerassem uma velha amizade.

Por qualquer razão que eu não percebia naquele preciso instante, apetecia-me fazer parte da banda de Mervin. Talvez eu tivesse jeito para a música. Nunca me testara nesse campo. Os poucos músicos que, por acaso, conhecera até então não me haviam dado qualquer oportunidade e eu não tivera à vontade para me dispor a colaborar com eles. Se conseguisse integrar-me no grupo de Mervin, venceria a inibição e sempre ficaria com mais alguma coisa que fazer. De resto, sabia-se lá se, um dia, aquela ou outra banda de que eu viesse a fazer parte não assinaria um contrato milionário qualquer, levando-nos a actuar nos maiores e melhores palcos do mundo. Eu tinha que fazer alguma coisa comigo e a música podia ser um caminho a experimentar.

Quando todos se levantaram para sair, Mervin quis saber qual o meu destino. Ao ser informado de que eu procurava residência, ofereceu-se prontamente para me disponibilizar um dos quartos da casa onde vivia.

Podes lá ficar o tempo que quiseres  disse com voz excitada.  Não te preocupes com o pagamento!

Aceitei a oferta sem hesitar um segundo, enquanto Mervin, por sua vez, me pedia boleia, explicando que o carro dele estava na oficina.

Afinal de contas, vamos para o mesmo sítio...  comentou, justificando o facto de precisar do meu transporte ainda antes de me fazer seu hóspede.

Até chegarmos ao sítio onde vivia, Mervin não se cansou de falar da sua banda, pondo-me a adivinhar contactos com editoras discográficas, abordagens da imprensa da especialidade, amizades com promotores de concertos, aplausos, muitos aplausos...

Passei dois semáforos vermelhos consecutivos, deixando Mervin subitamente pálido e sem voz, o que me fez lembrar aquele segundo mágico entre o fim de uma música e a reacção do público.

Queres matar-nos?  perguntou.

Respondi-lhe com uma gargalhada e passei mais um vermelho.

É já aqui  disse Mervin, com um suspiro de alívio, sugerindo que eu estacionasse em cima do passeio.

A sua residência ficava no rés-do-chão de um prédio antigo carente de obras. Mervin meteu a chave à porta com ar firme e deu-me passagem para uma sala escura na qual só consegui divisar a claridade trémula de uma porta ao fundo. Acendeu a luz e chamou:  Cat!

Vi aparecer uma mulher jovem, de olhos baixos, desgrenhada, em camisa de dormir, descalça, com um bebé nos braços, rodeada por três crianças silenciosas, que se agarravam umas às outras e às vestes da mãe, avançando em pequenos passos na nossa direcção.

A minha mulher e os meus filhos!  disse Mervin, abrindo os braços de maestro.





2



Conversámos durante todo o serão. Perto das onze da noite, Mervin interrompeu a conversa comigo para informar a mulher de que, a partir daquela noite, eu passaria a dormir no quarto dos filhos. Sem levantar objecções, ela transferiu para os seus próprios aposentos o colchão e os lençóis das crianças, que tinham adormecido sobre a alcatifa da sala de estar. Em seguida, pegou nos filhos ao colo, um por um, e levou-os para a cama. Isto, enquanto Mervin voltava a concentrar em mim toda a sua atenção, falando-me das intermináveis aventuras da banda que fundara e dirigia. Já bastante depois da uma da madrugada, bocejou e disse que estava com sono.

Fui buscar os meus haveres ao carro, estendi o colchão no quarto que havia sido desocupado e amontoei o resto num canto.

Sentia-me esfusiante com o que me acontecera naquele dia. Sem que nada o fizesse prever, acabara por encontrar alojamento em casa de alguém que nunca vira antes. E deixara de estar à deriva.

O quarto que me fora destinado nem tinha uma janela para respirar. Entrava-me pelas narinas o cheiro fresco das crianças que ali tinham dormido até à noite anterior.

A certa altura, ouvi uma cama ranger. Primeiro, pausadamente; depois, a um ritmo mais acelerado. No quarto de Mervin não devia ser porque, durante o serão, eu tinha reparado que a mulher dormia num colchão sobre o soalho. O ruído que me chegava aos ouvidos era metálico e persistente, teimoso como um móvel antigo, bamboleando-se para um lado e para o outro, penetrando-me os tímpanos e enchendo-me de visões. Só podia ser no andar superior. A ruideira demorou mais de uma hora. Depois, houve um ligeiro rumor de vozes e o silêncio voltou.

Durante o tempo em que vivi na casa de Mervin, habituei-me a ouvir todas as noites a sinfonia rangedora daquela cama no piso de cima, uma espécie de máquina oleada, de cadência perfeita, que não hesitava em pôr a trabalhar os seus mecanismos retesados e obedientes, infalivelmente quando passavam trinta minutos da uma da madrugada, sendo o botão desligado sempre depois das duas e muitas, conforme me foi possível comprovar através do papelinho que durante algum tempo mantive no bolso e no qual assinalava o início e o termo do concerto. Que me lembre, só uma vez a máquina não trabalhou. E, nessa noite, não preguei olho.

Uma semana depois de me ter instalado em casa de Mervin, o meu quarto ainda se encontrava como no primeiro dia, com tudo ao monte, parecendo ser aquela a decoração que eu escolhera para o meu novo espaço. Passava o tempo a reflectir na banda de Mervin, no instante em que ele me convidaria a integrá-la, no que poderia ser de mim se tal hipótese viesse a concretizar-se. Achava tentador o que ele contava do grupo. E não atinava com mais nada.

Quando me levantava de manhã e me dirigia ao duche, via Cat sentada no chão da sala, descalça, com o cabelo caído sobre os olhos, em camisa de dormir, tentando ocupar as horas com os filhos.

Por vezes, sempre com a ideia na banda do marido, entretinha-me em brincadeiras com as crianças, enquanto a mãe ia para a cozinha fazer-lhes alguma coisa de comer. Por volta das dez, o bebé acordava e eu corria a tirá-lo da cama, pondo-me a embalá-lo, à espera que Cat tivesse oportunidade de lhe dar o seio.

Mervin só regressava ao fim do dia. Com impressionante regularidade, às sete da tarde, metia a chave à porta, entrava e distribuía beijos pela família. Depois, sentava-se no sofá e dizia para Cat:  Tira-me os sapatos!

Ela obedecia, religiosamente, enquanto eu ficava à espera que ele me desse novidades da sua banda ou que, ao menos, me convidasse para experimentar algum instrumento num dos próximos ensaios. Mervin, porém, insistia em falar dos seus projectos musicais, sem me ter em conta. Nunca cheguei a saber que interesse nutria por mim, se é que o nutria, ou se me ia deixando ficar em sua casa sem pagar aluguer de quarto pela simples companhia que eu fazia à mulher e aos filhos.





3



Vivi durante alguns meses na casa de Mervin. Decorei o meu quarto com luzes de cores variadas, tendo ocupado horas infindas a ligar fios diversos, que fazia subir pelas paredes e que afixava em pregos, uns mais altos que outros, para que a iluminação do espaço fosse a mais equilibrada possível. Ao todo, eram mais de doze lâmpadas. Achei que encontrara uma solução bastante melhor do que a das calças de ganga e das botas pregadas na parede. Tudo por um preço irrisório.

Já passava da meia-noite quando dei por terminada a instalação eléctrica. A minha primeira inclinação foi mostrá-la a Mervin, mas achei mais sensato fazê-lo apenas na manhã seguinte. No outro dia, esperei que se levantasse e chamei-o da porta do meu quarto.

Ele veio ter comigo com cara de quem receava alguma ocorrência grave.

Vem cá ver uma coisa!  disse-lhe. Deixei-o entrar, premi o interruptor e fiquei à espera da sua reacção.

Bestial!  foi o seu comentário, depois de habituar os olhos à claridade.  Parece uma discoteca!  E logo recuperando a rapidez de raciocínio:  Um dia destes, havemos de trazer cá a banda para ensaiar...

Depois, chamou Cat para que viesse apreciar a minha iluminação.  Parece uma árvore de Natal!  limitou-se ela a dizer, ainda ensonada.

Senti um profundo desgosto com as suas reacções. Saltava à vista a minha falta de originalidade. Como fora possível eu não ter previsto com antecedência que todas aquelas luzes fariam lembrar uma discoteca ou uma árvore de Natal? Depois de todo o trabalho que tivera, não me apetecia desfazer a iluminação, apesar de reconhecer o completo fracasso da minha ideia. As luzes seriam sempre problemáticas. Porque fariam lembrar outras coisas, inevitavelmente. Nem a possibilidade de a banda vir a ensaiar no meu quarto, o que faria aumentar as minhas hipóteses de fazer parte dela, me levantou o ânimo.

Às três da manhã, ainda andava no quarto em busca de uma saída para o impasse em que me encontrava. Eu sentia que dificilmente dormiria naquela noite enquanto não encontrasse uma solução para todas aquelas lâmpadas e fios. Para além disso, a pior coisa que me podia acontecer era ter a consciência de que trabalhara em vão.

Pus-me a contar as luzes pela quinquagésima terceira vez. Havia quatro lâmpadas verdes, três vermelhas, cinco azuis e duas cor de laranja. Catorze ao todo, e não doze. A forma desordenada como eu as colocara era o que dava ao conjunto um ar de discoteca ou de árvore de Natal.

Fiz a experiência de manter acesas só as lâmpadas verdes, desenroscando todas as outras, uma por uma. Sempre era uma forma de poupar dinheiro em interruptores, para além de que, àquela hora, o comércio estava encerrado e eu não admitia adiar uma tal ideia para o dia seguinte. O quarto ganhou uma dimensão completamente nova. Parecia um relvado, uma pastagem, um jardim, um campo de golfe. Senti-me bastante melhor.

A seguir, optei pelas lâmpadas vermelhas. O quarto ficou quente, infernal, demoníaco, um mar de chamas. Ideal para um momento de intimidade...

Numa terceira fase, acendi apenas as lâmpadas azuis e desenrosquei as vermelhas, criando um ambiente celestial. Deixei-me estar de pé, em atitude de deslumbre, a admirar os tons cósmicos que invadiam todos os contornos do meu quarto.

Por fim, as lâmpadas cor de laranja transformaram o espaço num pôr-de-sol esplendoroso. O meu colchão dava a impressão de ser um areal crepitante ao fim do dia.

O entusiasmo que senti com o resultado das experiências fez com que eu fosse mais longe e misturasse tons verdes e azuis, azuis e vermelhos, azuis e cor de laranja, virando o meu quarto numa grande tela luminosa, cheia dos mais diversos ambientes, possíveis de adequar a diferentes necessidades e ocasiões.

Deixei acesas as lâmpadas azuis e decidi, finalmente, descansar, quando o relógio caminhava para as cinco da manhã. Senti um formigueiro na alma. Os primeiros raios do dia entravam no quarto sem precisar de janela, limitando-se a atravessar as paredes como se elas lá não estivessem.





4



No dia seguinte, não descansei enquanto não recorri a um terceiro parecer sobre a decoração do meu quarto. Telefonei a Ralph, informei-o que mudara de casa e ele ficou de me visitar naquele mesmo dia à noite. Percebi que não faltaria ao combinado, nem que fosse para conhecer a minha nova residência. Não me atrevi a perguntar se viria sozinho ou com a prima...

Ralph apareceu pouco depois das nove da noite. Vinha sozinho, de gabardine comprida e cachecol. Apresentei-o à família com quem partilhava a casa e conduzi-o para o meu quarto, que estava preparado para acender as luzes vermelhas logo que eu carregasse no interruptor.

Não está mal  disse Ralph sem hesitações.  Parece um bordel! Ou melhor...  acrescentou com ar sisudo, enquanto endireitava os óculos sobre o nariz  ...parece um quarto de aluguer rápido numa pensão rasca!!

Para não mostrar que me ofendera e para evitar que Mervin ouvisse o comentário, dei duas gargalhadas sonoras, convidei Ralph a sentar-se e fechei a porta.

Isto ficava bastante melhor com uma iluminação normal  disse ele ainda.  Que é que te passou pela cabeça para fazeres uma coisa destas?

As suas palavras faziam-me sentir vergonha e preferi desviar a conversa.

O outro apartamento era bastante melhor  voltou Ralph à carga.  Como consegues viver com todos estes miúdos à tua volta?

Falei-lhe da banda de Mervin e das novas perspectivas musicais que se me deparavam. Não me atrevi a falar da minha secreta esperança em fazer parte do grupo, mas acrescentei que talvez pudesse vir a aprender alguma coisa de música...

Ainda te põem a tocar ferrinhos!  disse Ralph, desatando a rir como um perdido.

Percebi que ele o havia dito por brincadeira, mas a sua frase insinuava a minha falta de jeito para a música. A humilhação roçou-me os dedos dos pés. Tocar ferrinhos era a função menos exigente numa banda, geralmente atribuída a pessoas esforçadas que não sabiam fazer mais nada.

Foi de novo Ralph a quebrar o silêncio tortuoso que se seguiu:  Quando é que fazes alguma coisa pela tua vida?

Respondi-lhe que tinha muito tempo à minha frente e que não ia deixar de viver algumas experiências enriquecedoras a troco de uma qualquer actividade rotineira, por melhor que esta fosse.

És sempre igual  comentou. E depois de algumas expressões de visível tédio, perguntou:  Vamos tomar um copo a um sítio qualquer?

Para evitar que continuasse a invectivar-me com ditos pouco oportunos, convenci Mervin a fazer-nos companhia.

Entrámos numa cervejaria, onde nos demorámos quase duas horas, tempo durante o qual se falou de um sem número de banalidades, ao ponto de a qualquer instante se poder esperar que Mervin convidasse Ralph a assentar arraiais em sua casa. A empatia entre os dois era evidente. Embora fossem de formação completamente distinta, saltava à vista que se entendiam na perfeição.

Um sentimento de revolta tomou conta de mim, ao ver que Ralph conquistara o coração de Mervin de forma idêntica à que acontecera comigo. Se calhar, Ralph apenas ainda não fora convidado a mudar-se para casa de Mervin porque não havia espaço disponível. Só faltava eu receber ordem de despejo.





5



A banda passou a ensaiar com frequência no meu quarto, embora eu nunca ousasse pedir para que me deixassem participar. Sentava-me a ouvir os acordes e batidelas na esperança de que um dia se lembrassem de mim. Suportava tudo, por isso. A barulheira, a algazarra, os tropeções nas minhas coisas. Apesar de me sentir mal por ver que os meus haveres não eram poupados, admitia que se sentassem em cima dos meus livros e apontamentos, que se deitassem na minha cama, que guinchassem e saltassem, que mudassem as posições dos objectos a fim de arranjarem lugar para os instrumentos, que comentassem entre risos a minha decoração luminosa.

Quando os ensaios terminavam, eu perdia horas a endireitar tudo, a recolocar as coisas nos seus sítios, de joelhos limpando as beatas de cigarros e a cinza.

Depois, sentava-me na cama, a pensar em outras formas de tornar o meu espaço mais cativante. Experimentava mudar as coisas de sítio, verificava o funcionamento das lâmpadas, levantava-me para esticar a roupa da cama e punha-me a andar pelo quarto, analisando de ângulos diversos todas as possibilidades de colocação desta ou daquela peça.

Durante o dia, os filhos de Mervin não largavam a porta do meu quarto. Batiam com insistência até que eu a abrisse e pediam-me para acender as luzes, ora as vermelhas, ora as azuis, ora as de outras cores. Queriam a toda a força tocar nas lâmpadas com os dedos, mas eu receava que algum deles fosse electrocutado, o que me deixava em constante sobressalto. Faziam perguntas atrás umas das outras e depois das minhas respostas voltavam à questão inicial, talvez na tentativa de verificarem se eu mantinha a coerência das explicações. Calçavam os meus sapatos, vestiam a minha roupa interior, imitavam os instrumentos da banda e passeavam pela casa ruidosamente. Eu procurava esconder a arrelia que me assaltava nessas ocasiões, para não desagradar a Cat, e preocupava-me em seguir todos os movimentos das crianças, para que nenhuma das minhas coisas se perdesse, enquanto ia imaginando mentalmente novos sítios para as colocar ou ia procurando não me esquecer dos lugares exactos em que as tinha posto antes.

Quando as devolvia aos seus lugares, procurava fazê-lo com o maior rigor. Se alguma coisa ficava um milímetro desviada do sítio que eu lhe havia atribuído de início, não descansava um minuto enquanto não corrigia a situação. Colocava e recolocava as peças, mais para a esquerda ou mais para a direita, até ter a certeza de que estavam como eu as pusera no princípio. Bastava a dobra de uma peça de roupa não estar à minha maneira para eu a fazer e refazer durante uma infinidade de tempo, bastava a franja de um tapete ter ficado com os fios sobrepostos para eu nunca mais descansar enquanto não a conseguisse endireitar, bastava uma sombra desviada do seu sítio habitual para me enervar... Para mim, uma coisa fora do lugar era como um espírito perdido do corpo a que pertencia. Imaginava o seu sofrimento e sentia-me na obrigação de contribuir para o reencontro das partes. Podia demorar horas, mas eu não desistia enquanto não via a forma plenamente reconciliada com o que a preenchia. Quando o conseguia, notava-se que as coisas adquiriam um brilho próprio de quem recuperava a tranquilidade dos elementos.

Ainda hoje me intriga pensar na forma como ocupava os meus dias nessa altura. E não me restam dúvidas de que grande parte das horas eram passadas a tentar encontrar coragem para sugerir a Mervin a minha entrada na banda ou a corrigir as posições dos objectos que os músicos e as crianças se encarregavam de desendireitar. A possibilidade da minha participação na banda provocava-me ansiedade, um sentimento que eu resolvia dedicando-me a arrumar o quarto, ou a desarrumá-lo, para o arrumar, outra vez, de uma forma nova, que, frequentemente, pouco diferia da anterior.





6



Perto da casa de Mervin, havia um pequeno jardim num recanto entre dois quarteirões, onde passei a ir quando precisava de arejar as ideias. Geralmente, não aparecia ninguém por lá. Sentava-me sempre no mesmo banco, de frente para a paisagem dos edifícios caídos do céu.

Certo dia, decidi sentar-me noutro banco ao acaso e quase me ia estatelando no chão. O banco estava solto. Por segurança, levantei-me, prontamente, e enquanto verificava o seu estado de solidez assaltou-me a ideia de o levar para o meu quarto. Aquele banco, com a tinta seca e descascada, poderia ser a solução de que o meu espaço necessitava para ganhar um ar verdadeiramente original. Com aquele banco, o meu quarto já não corria o risco de ser considerado uma discoteca, uma árvore de Natal ou um bordel, antes se transformaria num autêntico jardim, que eu podia iluminar de formas diferentes, consoante a hora do dia ou da noite. Além de tudo, aquele banco daria um jeito formidável aos ensaios da banda de Mervin. Podia servir para descanso dos instrumentos e para os músicos se sentarem durante os intervalos ou enquanto tocavam. Aquele banco seria uma peça fundamental para o meu quarto, contribuindo para a resolução de muitos dos meus anseios.

Avaliei as hipóteses de o fazer mudar de ares. Calculei a distância a que o jardim se encontrava da casa de Mervin. Contei as janelas dos prédios através das quais o meu furto poderia ser detectado. Hesitei. Correria o risco de me denunciarem à polícia. Mas não desisti.

Cuidadosamente, voltei a sentar-me no banco, para garantir que ninguém se apoderaria dele, pelo menos enquanto eu não decidisse o que faria.

Levar o banco para o meu quarto teria os seus perigos, mas a compensação era tentadora. Havia, no entanto, uma segunda dificuldade: o peso. Seria eu capaz de transportar o banco até à porta da casa de Mervin? E se durante o trajecto alguém me perguntasse de onde o tirara ou para onde o levava?

Podia sempre responder que me tinham encarregado de o reparar, mas qualquer pacóvio perceberia rapidamente a mentira. Eu não tinha aspecto de trabalhar para o Município e os bancos costumavam ser consertados no próprio local.

A hipótese mais razoável seria o recurso ao carro. Podia sempre estacionar, durante a noite, perto do jardim e colocar o banco na bagageira. Contudo, eu não tinha a certeza de o tamanho do meu automóvel ser suficiente para carregar uma peça de tal dimensão. Se assim fosse, só me restaria fazer o percurso entre o jardim e a casa de Mervin com o porta-bagagens aberto, correndo o risco, embora menor, de o meu furto ser detectado.

Analisadas todas as hipóteses, a única que eu excluía era a de deixar o banco onde estava. Medi-o com a mão aberta a toda a distância entre os dedos polegar e mindinho, repetindo várias vezes a operação, a fim de evitar qualquer lapso. Seis palmos de comprimento. Havia ainda os pés retorcidos em ferro forjado, bem como o ângulo das costas, cujas dimensões eram mais difíceis de calcular. Deixei-me ficar pelo comprimento. Seis palmos.

Saí do jardim e fui até ao carro verificar as medidas do porta-bagagens. Talvez coubesse. À tangente.

A solução de recorrer ao automóvel parecia-me inevitável, porque mesmo que o banco de jardim me obrigasse a manter o porta-bagagens aberto, aquela era a única forma que eu tinha de ultrapassar o problema do peso. Não me podia dar ao luxo de o carregar às costas e depois ver-me na contingência de parar para descansar no percurso até à casa de Mervin. Quanto mais tempo demorasse a operação, maiores seriam as possibilidades de me apanharem.





7



Voltei várias vezes ao jardim durante o serão, com receio de que mais alguém descobrisse que o banco estava solto e o levasse antes de mim. Sentava-me e levantava-me, dava uma volta, sentava-me de novo...

Pensei na hipótese de pedir ajuda a Mervin, mas achei que ele podia não estar pelos ajustes, acabando por me dissuadir da ideia.

Fechei-me no quarto, para que não adivinhassem o meu estado de ansiedade ou se pusessem a fazer-me perguntas. Enquanto as horas não passavam, aproveitei para ir estudando o sítio exacto onde colocaria o banco. Tirava medidas, mudava objectos, desviava a cama, sempre em bicos de pés, para evitar que pressentissem alguma agitação nos meus redutos.

Por volta da meia-noite, já Mervin e toda a família dormiam. À uma e trinta, começou o concerto de guinchos no andar superior. Naquela noite, desejei que os artistas se cansassem depressa porque não convinha avançar com o plano enquanto toda a vizinhança não estivesse em completo sossego.

Só por volta das três da manhã, porém, deixei de ouvir os ruídos no piso superior. Dei-lhes cerca de meia hora para adormecerem e, então, quando não havia quaisquer sinais de alerta em redor, saí de casa com o intuito determinado de trazer o banco do jardim para o meu quarto.

Antes de entrar no carro, dei um giro a verificar se todos os estabelecimentos comerciais estavam encerrados ou se havia algum guarda nocturno nas redondezas.

Sentei-me ao volante e fui estacionar o veículo o mais perto possível do jardim. Desliguei o motor, deixando-me ficar por uns momentos a observar o que se passava na zona. A cidade estava mais calma do que nunca, de onde se podia concluir que ninguém sonhava com o que eu me preparava para fazer.

Estava a poucos minutos de ter em minha posse, no meu quarto, um banco de jardim, sem tirar nem pôr. Um banco de jardim permitir-me-ia viver dentro de casa como no exterior, na rua, numa praça, uma sensação que eu sempre alimentara, mas que nunca considerara estar ao meu alcance.

Uma casa era uma prisão, em certa medida. E a única forma de superar essa sensação era abrir os espaços interiores ao mundo, derrubando conceitos retrógrados e limitados. O banco de jardim jogaria perfeitamente com o tubo de escape, do qual não me desfaria por nada deste mundo. Em articulação com as lâmpadas que eu tinha no quarto, o banco e o tubo de escape constituiriam um símbolo notável da exterioridade que eu procurava. A confiança que sentia era tal que, mesmo assim, achei por bem afastar todas as ideias que pudessem prejudicar a minha concentração na tarefa que me esperava.

Saí do carro e fui sentar-me no banco que planeava roubar, simulando descontracção. Se passasse alguém, havia de pensar que eu estava com insónias e que fora até ao jardim respirar o ar puro da noite.

Depois, sem perder tempo, avancei como uma sombra que se desloca na noite apagando ao mesmo tempo o seu próprio rasto. Agarrei no banco com toda a força de que me sentia capaz, abri o porta-bagagens do carro, meti-o lá dentro sem o conseguir fechar, pus a chave na ignição e vim com o coração aos saltos até à casa de Mervin.

Entrei sem fazer barulho, descarreguei o banco no lugar que havia previamente estudado e sentei-me nele, em várias posições, a ver se estava tudo bem, se a mudança não tinha deixado atrás alguma peça essencial.

O efeito do banco no meu quarto era surpreendente. Acendi todas as lâmpadas e deixei-me respirar a nova atmosfera.

Fui buscar à cozinha um pano molhado com o qual me pus a limpar o banco de impurezas, restos de tinta e poeiras. A partir daquele momento, aquele banco era meu, só meu, em todos os sentidos, ao ponto de eu sentir que podia mesmo reivindicar a sua autoria.

Coloquei-lhe alguns livros em cima, de forma casual, para dar a ideia de que a peça estava ali há bastante tempo e que fazia parte dos meus móveis de estimação.

No dia seguinte, deixaria Mervin certamente surpreendido e tinha a certeza de que ele concordaria com a minha sugestão de que o banco daria bastante jeito aos ensaios da banda.





8



Mervin já tinha saído quando acordei. À noite, não apareceu. Cat disse que tinha ido tocar com a banda num sítio qualquer e que no dia seguinte teria outro espectáculo. Senti uma profunda mágoa por não me terem convidado para os concertos, depois de tantas vezes ter cedido o meu quarto para os ensaios da banda. Feriu-me nem terem pensado em mim, sequer, para iluminar o palco, instalar os equipamentos, controlar o som dos microfones. Ainda por cima, eu não me esquecera do grupo quando decidira apropriar-me do banco de jardim...

O facto de Mervin nada me ter dito sobre os espectáculos da banda significava que eu não tinha hipóteses de vir a fazer parte dos seus projectos musicais. Senti um vazio tal que nenhuma pedra alguma vez poderia preencher. Aquela atitude marcaria de forma decisiva o nosso relacionamento a partir de então. De súbito, eu nada teria para dizer a Mervin se o enfrentasse naquele preciso momento. Para ele, se calhar, esquecer-me fora o gesto mais natural deste mundo. Mas, para mim, significou o fim de um tempo. Desse dia em diante, eliminei por completo a música da minha vida. Nem uma nota, um acorde ou o simples trautear de uma canção.

Deixei de sentir que vivia em casa de Mervin. O quarto que ele me cedera já cheirava a outra pessoa. Só tive pena de não lhe poder mostrar o banco de jardim que passara a fazer parte do meu mobiliário. Nem quis saber a opinião de Cat, que me parecia mais distante e evasiva do que o habitual, como se adivinhasse o meu ressentimento, mas não tivesse palavras para explicar a atitude do marido.

O banco de jardim também viera encher demasiado o meu quarto. Estava em todo o lado. Sempre que eu me movimentava numa ou noutra direcção, acabava por lhe tropeçar nas costas ou nos pés, ao ponto de em poucas horas ter ficado com várias nódoas negras nos joelhos e nas ancas.

Como não admitia a hipótese de me desfazer do banco, nem de qualquer outra peça que eu carregava de casa em casa, só me restava mudar de residência, uma perspectiva que o comportamento de Mervin viera facilitar.

Eu queria todo um jardim, um amplo jardim, e não apenas um banco, o que exigia bastante mais espaço do que aquele de que eu dispunha no momento. Sentia necessidade de largueza. Da mesma forma que me apoderara do banco durante a noite poderia também arranjar outras coisas para ornamentar a minha próxima casa. Afinal, a originalidade não tinha preço. Só exigia atenção, ousadia e persistência.

Era evidente que não desembolsava qualquer dinheiro para ficar em casa de Mervin, o que deixaria de acontecer quando mudasse de casa, mas eu sentia que estava perto de arranjar emprego. Qualquer coisa me dizia que, mais dia menos dia, me chegaria uma resposta afirmativa de alguma empresa. O importante era avançar no momento exacto, acertar no dia, se calhar de manhã, ou talvez de tarde. Uma hora poderia fazer a diferença porque seria bastante para alterar a disposição de um chefe ou de um simples empregado de recepção. Se algo corresse mal comigo, menor firmeza de passos ou clareza de voz, poderia deitar tudo a perder. Seria fundamental apresentar um ar convicto e destemido. Haveria ocasiões, contudo, em que eu tinha a nítida sensação de que não valeria a pena tentar. Porque eu não estava com a disposição perfeita ou porque o momento não seria o mais indicado. Nessas alturas, e afastada de vez a perspectiva de uma carreira musical, eu ficava de novo sem saber o que iria ser de mim, deixando-me enlear numa teia de sonhos.










Capítulo III





1



Utilizei o meu último cheque para alugar uma nova casa, grande e cara, com relvado e algumas árvores nas traseiras. Tive que fazer duas viagens de carro para transportar tudo o que acumulara no quarto que me servira de abrigo durante os últimos meses. Ao despedir-me de Cat, prometi voltar alguns dias depois para falar com Mervin, sabendo contudo que não o faria. Os miúdos vieram acenar-me à porta com os seus rostos de pequenos melões abandonados e eu carreguei no acelerador já a imaginar a forma como disporia as minhas coisas na residência que acabara de arrendar.

Por melhor emprego que obtivesse, eu sabia que não conseguiria pagar o segundo mês de renda da nova casa. Isso queria dizer que dentro de quatro semanas teria que arranjar outro sítio para residir. Mas não me apetecia dar atenção ao assunto naquele momento. Um mês era muito tempo. Passariam milhares de minutos antes que eu tivesse que me preocupar com a situação. Até lá, poderia sempre surgir algum projecto ou ideia que me levasse a contornar a dificuldade.

O que me interessava era ter a certeza de que viveria sem restrições nos próximos trinta dias. Queria viver à larga, sem me apoquentar com nada, ocupar espaços vastos, sentar-me a olhar em volta, pensar e repensar em coisas diferentes, dar campo à minha criatividade, pôr-me em causa, questionar o que se passava à minha volta, construir o futuro em cada instante, dia após dia.

Se não tivesse peças suficientes para dar vida à casa, deixaria alguns quartos vazios, ou poderia mesmo alugá-los, enquanto procuraria tirar o máximo partido dos restantes. Eu não precisava de todo o espaço que passava a ter disponível. Bastava-me um para dormir, a sala de estar e a cozinha.

É verdade que, mesmo sem pagar a renda no final do mês, poderia recusar-me a abandonar a casa, esperando que o problema se resolvesse em tribunal, mas eu não era capaz de ver o senhorio bater-me à porta todos os dias com o intuito de cobrar o seu dinheiro, se calhar, indo ao ponto de fazer cenas de rua ou ameaçar-me de caçadeira em punho. Preferia sair de livre vontade.

Entre a cozinha e a sala de estar, onde saltava à vista uma felpuda alcatifa castanha, havia uma parede baixa, com uma passagem entre as divisões e que permitia uma ampla visão logo que se entrava. Nos primeiros dias, cheguei a especar-me por diversas vezes à porta da rua, do lado de dentro (para que os vizinhos não notassem) só para apreciar o enorme espaço que a sala de estar e a cozinha ocupavam, enquanto ia congeminando soluções para tornar tudo aquilo surpreendente. Deixava-me estar ali por tempos sem fim, observando as distâncias, a cor clara das paredes iluminadas pelo janelão da cozinha que dava para as traseiras, a altura dos rodapés, as tomadas e interruptores eléctricos colocados nos seus sítios, o formato das portas ligeiramente abauladas na parte superior. A seguir, não resistia à tentação de me despir e andar por toda a casa entregue à minha liberdade. Não contava as horas. Perdia-me nelas. Só metia alguma coisa na boca quando o estômago solicitava. Sempre que não me apetecia ir à rua, para não ter que me vestir nem enfrentar os olhares da vizinhança (que pareciam adivinhar que eu não viveria ali por muito tempo) limitava-me a ingerir pão com manteiga e leite.

Se alguém me visse andar pela casa, sem destino, sem qualquer agasalho, sem preocupações estéticas ou morais, só poderia concluir que eu era feliz. Mas eu sabia que em todos os meus movimentos havia uma camada fina de dor que corria o risco de fracturar ao mínimo deslize. Por isso, ria para espantar a ameaça. Ria e voltava a rir, enquanto circulava por todas as divisões da residência, abrindo e fechando portas, mostrando-me, conhecendo os novos espaços em que eu passava a reflectir-me.





2



Três dias depois de me ter instalado na nova casa, aperaltei-me e dirigi-me à empresa a que me candidatara para fazer traduções.

A recepcionista não pareceu dispensar-me mais atenção do que dispensaria a qualquer outra pessoa que a abordasse, o que me deixou com um ligeiro atordoamento. Antes de telefonar para o gabinete do gerente para o informar da minha presença, ainda se ocupou de algumas tarefas que tinha em mãos, dando-me tempo para recuperar e apresentar um ar sorridente e confiante.

Ao fim de uns cinco minutos, fiquei a saber que me atenderiam dentro de breves instantes. Conduziram-me a uma pequena sala de espera, onde a secretária do gerente, com aspecto de estar a caminho dos quarenta anos de idade, me perguntou se eu desejava café.

Pode ser...  balbuciei, apercebendo-me, prontamente, de que tinha sido pouco firme na resposta e que deveria corrigir a minha postura, não fosse o eco da minha hesitação chegar aos ouvidos do chefe. Mas a expressão “pode ser” também deixava no ar a ideia de que eu não era uma pessoa inflexível ou intratável. Significava que tinha ponderado o convite para tomar café, apesar de o mesmo constituir uma simples formalidade. Portanto, nem tudo estava contra mim naquele momento.

A secretária trouxe-me a chávena fumegante, dando-me oportunidade de lhe ver a face em diversos ângulos e claridades. Depois, deu meia volta e saiu com ligeireza.

Dois ou três minutos mais tarde, reapareceu, dizendo que estava à minha disposição se eu desejasse mais alguma coisa.

Para descontrair, pus-me a andar de um lado para o outro na sala, tentando ao mesmo tempo adivinhar os termos em que decorreria a minha conversa com o editor. Mas era a imagem da secretária que me assaltava a todo o momento. Tinha o ar fresco e determinado das pessoas experientes. O seu olhar era penetrante, apesar de não ultrapassar os limites do profissionalismo. Não fui capaz de perceber os seus sentimentos. Por mais voltas que desse à cabeça, havia em torno dela a muralha de uma frieza cerebral que não me permitia qualquer aproximação. Pensando bem, podia dizer-se que a sua face tinha um ar másculo. E era isso que dificultava a apreensão do seu íntimo.

A fim de tirar dúvidas, pus a hipótese de pedir mais um café, mas recuei nos meus propósitos para não correr qualquer risco de indiscrição.

A certa altura, a porta abriu-se e a secretária veio dizer-me que o gerente tinha acabado de receber um telefonema que iria demorar, se eu não me importava de voltar no dia seguinte. Ante o meu ar de quem avaliava se me estaria a ser apresentada uma desculpa ou se o gerente estava realmente a braços com um telefonema prolongado, a secretária acrescentou ainda, com um breve sorriso, que as suas feições masculinas tornavam largo:

Mas pediu-me para dizer que lhe vai dar um livro para traduzir. Amanhã, trocarão impressões sobre o assunto.

Não quis ouvir mais nada. Tinha acabado de arranjar trabalho, o que me permitiria encarar a vida de uma forma completamente nova.

Vim para casa mais confiante do que nunca. A actividade de traduzir sempre me parecera a mais adequada à minha forma de ser porque me deixava livre de horários e me dava a possibilidade de trabalhar em casa. Assim, ao contrário do que acontecia com a maioria das pessoas, até nem teria que me preocupar com a indumentária que usaria todos os dias. Só esperava que me dessem para traduzir uma obra que não apresentasse grandes dificuldades técnicas. Não tanto por duvidar da minha competência para executar a tarefa, mas sobretudo para me deixar mais tempo livre para a casa que acabara de alugar. Eu havia de traduzir ao comprido na relva, na cama, na mesa da cozinha, na alcatifa, enquanto faria intervalos para meter uma fatia de queijo na boca, ouvir música, dedicar-me a pregar coisas nas paredes, andar sem roupa pela casa, argumentar em voz alta com o meu próprio umbigo...





3



Os primeiros três dias passaram sem eu me aperceber se tinha feito sol ou chuva. Deixei em cima do mesão da cozinha o pequeno livro que me deram para traduzir num prazo de duas semanas e entretive-me a organizar a casa. Duas semanas era tempo mais que suficiente e eu não duvidava de que quatro ou cinco dias me bastariam para resolver o assunto. Nem me voltei a lembrar do convite para jantar que no segundo dia em que me desloquei à editora fiz à secretária do gerente, violando as regras do bom senso mais elementar. A minha iniciativa foi inesperada, despropositada e precipitada. Louise, assim se chamava ela, ficou naturalmente perplexa e gaguejou uma resposta cujo sentido não cheguei a perceber. De qualquer forma, o facto de não ter recebido um rotundo “não” já me parecia extremamente positivo. Disse-lhe que lhe telefonaria mais tarde para combinar o dia e a hora e desapareci a toda a pressa não fosse ela arrepender-se. O perfil do seu rosto não me saía da memória.

Quando, passados dias, recordei o episódio, continuava sem perceber como fora capaz de dirigir semelhante convite a uma pessoa que só vira duas vezes, ainda por cima pondo em risco a minha relação profissional com a editora na qual Louise desempenhava um cargo de relativo peso. Para além do mais, eu nem sequer sabia se o dinheiro que me restava seria suficiente para pagar o jantar de duas pessoas num restaurante de qualidade mínima.

Mesmo assim, numa sexta-feira à tarde, telefonei a Louise, a perguntar se estava tudo bem. O pior que poderia ouvir seria que o gerente achara por bem prescindir dos meus serviços.

Depois de trocarmos cumprimentos ao telefone, contudo, senti que o meu despedimento não estava em causa. Enchi-me de coragem e perguntei-lhe se estava disponível no dia seguinte, à noite. Mais sóbria do que nunca, ela limitou-se a responder:

Estou.

Fui buscá-la a casa, onde cheguei através das instruções que anotara num pequeno bloco, depois de uma quantidade de voltas à procura da rua, que era de apenas um sentido, e que ficava numa das zonas residenciais menos conhecidas da cidade.

Fora do trabalho, Louise era igualmente cerebral e distante. Quando entrei em sua casa, ofereceu-me uma bebida e sugeriu que me sentasse por uns minutos, enquanto ela se aprontava.

Passei todo o jantar com um aperto no coração, por recear que a conta fosse demasiado elevada para as minhas posses. E quando a factura me foi apresentada, por pouco não fui vítima de um colapso. Tive, no entanto, o sangue frio para dar a desculpa de ir aos lavabos e chamar o empregado à parte, dizendo-lhe que me esquecera do cartão de crédito. Prometi-lhe pagar a conta no mais curto espaço de tempo, e pus-lhe na mão todo o dinheiro de que dispunha no momento.

Durante a refeição, Louise limitou-se a falar duas ou três vezes. Soube que era divorciada, que tinha um filho de 17 anos que fora passar o fim-de-semana a casa de uns amigos e pouco mais.

Tive que alimentar a conversa quase permanentemente. Falei-lhe da casa que acabara de alugar, dos sonhos que tinha para o futuro, de alguns sítios que conhecia na cidade, enquanto ela me ouvia, levando a comida à boca com cerimónia e recato. Por vezes, reagia com um pequeno sorriso a alguma das minhas conversas, mas até nessas ocasiões o seu semblante conservava a tensão.

Depois da sobremesa, puxou de um cigarro e fumou-o, pausadamente, sem nunca tirar os olhos de mim. Havia ocasiões, sobretudo vendo-a sentada atrás de uma mesa, em que eu não sabia bem se estava perante uma mulher ou um homem.

Quando saímos e entrámos no carro, ela perguntou-me de chofre:

Posso dar-lhe um beijo?

Antes que eu tivesse tempo de reflectir no significado da pergunta, senti os seus lábios colados aos meus e a sua língua à procura da minha. O seu gesto não demorou mais do que uns segundos, após os quais Louise imediatamente se retraiu, dizendo de forma seca e cortante:

Desculpe! Esqueça o que se passou...

Reagi como se nada de especial tivesse acontecido. Fiquei a gostar de Louise. Fui levá-la a casa e fiz-lhe companhia até perto da meia-noite.





4



O banco de jardim era a única peça que eu tinha na sala de estar. Parecia-me pouco. Embora eu apreciasse uma casa sem muita mobília, aquela onde eu agora residia era demasiado grande para móveis tão escassos. Percebi que tinha que fazer alguma coisa para dar a volta à situação.

Certa vez, tinha visto numa loja uma mobília de sala toda feito de troncos de árvore, mas o seu preço não estava ao meu alcance.

Remoí o assunto durante algumas horas e acabei por concluir que a solução não era assim tão difícil. Porque não havia de fazer uma mobília semelhante com as minhas próprias mãos? Bastar-me-ia arranjar pregos, cola e serrote. As árvores estavam ali mesmo diante dos meus olhos nas traseiras da casa. Se as cortasse durante a noite, ninguém daria por nada. E quando o senhorio descobrisse já seria tarde.

Voltei ao estabelecimento onde tinha visto a tal mobília de troncos e pus-me a inspeccioná-la com detalhe, simulando interesse na sua compra. Registei de memória a forma como os troncos se encaixavam, a inclinação das costas, o formato dos pés, a largura das tábuas que serviam de assento. Cheguei mesmo a dizer ao empregado, que não me largara um minuto, que preparasse a encomenda para eu a levar, mas quando ele já dera início à tarefa, informei-o de que afinal teria que voltar a casa para tirar uma dúvida sobre medidas e que regressaria dali a um quarto de hora. Desapareci a alta velocidade, para não me esquecer dos pormenores da construção, e pus mãos à obra.

Passei a noite a cortar troncos de árvore com um serrote emprestado por um velhote que morava duas casas abaixo da minha e que se ofereceu para me ajudar, caso fosse necessário. Expliquei-lhe que se tratava de uma insignificância e corri a fechar-me em casa.

Um dos vizinhos do lado telefonou perto da uma da manhã a protestar por causa do barulho que eu vinha fazendo há horas. Pedi-lhe desculpa pelo incómodo e prometi que só voltaria ao trabalho no dia seguinte. Contudo, fui incapaz de controlar o impulso, além de que receava esquecer-me das soluções de pormenor que memorizara na loja. Prossegui o corte dos troncos, embora serrando bastante mais devagar, quase em movimento de câmara lenta, o que fez com que a tarefa demorasse praticamente o dobro do tempo a concluir.

Quando amanheceu, eu tinha a casa cheia de pó de madeira e de troncos de árvore espalhados em todas as direcções! Parei, finalmente, olhei à minha volta, e senti uma profunda satisfação ao verificar que avançara bastante na concretização do meu plano. Tinha os braços retesados pelo esforço de serrar durante horas, as pernas arquejantes, a respiração pesada e uma dor fina no peito, mas considerava que tinha valido a pena, nem que fosse para perder alguns quilos.

Um dia, quando tivesse a mobília pronta e a casa apresentável, havia de convidar Louise para me visitar. Trocaria impressões com ela sobre os arranjos do meu espaço e, pela sua reacção, ficaria a conhecê-la melhor. Talvez me voltasse a beijar com os seus lábios grossos de mulher, que faziam lembrar a boca de um homem. Ou talvez fosse mais longe, perdendo de vez a compostura.

Estendi-me na alcatifa e vi o rosto vincado de Louise na minha frente com uma nitidez superior a todas as realidades. Havia na expressão da sua face um halo de sensibilidade e dor para lá da dureza das formas com que enfrentava a rotina dos dias. Apeteceu-me fotografá-la, registá-la, imprimi-la numa das paredes da minha casa.

Senti-me ir ao fundo, adormecer, perder o contacto com as coisas. Só o rosto de Louise permanecia diante dos meus olhos como uma ameaça de liberdade. O seu cabelo liso e negro, até à altura do pescoço e caído em franja sobre a fronte, surgiu-me, de repente, pintado de verde. A sua pele branca e bem tratada, balizada por linhas rígidas, ganhou tons avermelhados, tons de fogo, e o seu reflexo obrigou-me a abrir os olhos, na tentativa de não perder o fulgor da imagem. Mas percebi que devia fazer precisamente o contrário, deixar-me cair no sono, se não queria perder o brilho daquela face crispadamente doce, dominada pelo contorno dos lábios, que acabei por pintar de negro, a cor do inominável.





5



Decidi expor livremente pela casa todas as minhas peças de vestuário, dependurando-as em pregos que afixei nas paredes da sala de estar, da cozinha e do meu quarto de dormir. O espaço ficou repleto de cores e de formas que rapidamente lhe transmitiram uma sensação de alegria que eu nunca imaginara possível e que se coadunava perfeitamente com a mobília de troncos, que eu concluíra, e na qual depositava um grande orgulho, apesar de não ter conseguido evitar que um dos cadeirões ficasse com um pé mais curto do que os outros. Como não me apeteceu serrar todos pela mesma medida, resolvi o defeito pondo um cartão dobrado por baixo do pé coxo.

Na minha casa, cada peça de vestuário era uma obra de arte. Calças, blusas, meias, sapatos, casacos, pullover’s, jardineiras, calções mereciam ser apreciados nas suas formas e expressões mais imprevisíveis. Vista assim, na parede, dependurada ao vento da alma, a roupa adquiria um outro sentido. E dizia muito mais de mim do que à primeira vista podia parecer. As cores e dimensões constituíam uma revelação. A avaliar pelo tamanho das peças, eu era bastante maior do que diante do espelho. Dava a ideia de que toda aquela roupa nem era minha, mas sim de outro corpo, outra vida, outra sensibilidade, sem qualquer relação comigo. A descoberta dessa “outra pessoa” que vestia e habitava a minha roupa provocava-me uma ansiedade tranquila, dando-me vontade de conhecê-la, falar com ela, tocá-la. Cheguei a imaginar que andava pela casa comigo, que se sentava à mesa, que me acompanhava no duche. E houve mesmo alturas em que tive a nítida impressão de me passar os dedos pelo ombro e pelas costas como se me quisesse comunicar alguma coisa de extremamente secreto.

O vestuário que eu decidira dependurar nas paredes era uma maneira de eu me abrir, de me expor, de me dar. A partir daquela altura, não podiam acusar-me de ser uma pessoa reservada.

A roupa acabava por ser uma espécie de segunda pele e era esta precisamente que eu mostrava a quem quisesse ver.

Os roupeiros eram espaço perdido dentro de uma casa: escondiam a roupa (que se fez para mostrar) e, além de tudo, impediam-na de respirar, arejar convenientemente, deixando-a, muitas vezes, húmida e com cheiro a mofo. Os roupeiros eram o esconderijo de um dos nossos bens mais preciosos, eram o túmulo para onde atirávamos a degradação do nosso segundo corpo.

Todos os dias de manhã, em vez de me dirigir ao guarda-fato para escolher o que vestiria naquele dia, seria muito mais aliciante pôr-me a andar pela casa, olhando as paredes e imaginando a combinação das peças conforme o meu estado de espírito. Sentar-me-ia à mesa a saborear uma bolacha com chá, enquanto reflectiria sobre a relação entre as minhas escolhas e o que faria nas horas seguintes, a cor do dia, o estado do tempo. Com a roupa exposta de tal forma, eu não teria hipóteses de me arrepender ou de falhar nas opções por esta ou aquela blusa, meias, sapatos, calças, cinto, chinelos. Era tudo mais óbvio, mais fácil, mais de acordo com a minha sensibilidade. O vento exigia determinadas cores, o sol outras, as nuvens outras ainda, como se as condições do tempo reflectissem o que me ia na alma, ou viceversa. O equilíbrio entre a natureza e o meu ser tornava-se obrigatório. Quando não o conseguia, o trabalho não rendia, as ideias não surgiam. Tudo se tornava mais pesado e denso em mim, lançando sombras sobre o que me rodeava. Nessas ocasiões, eu punha-me a trocar as coisas de sítio, para que a leitura que fazia delas e das suas posições me permitisse outra interpretação, outra perspectiva, outro entendimento. Trocava uma camisa por um lenço ou uma peça de roupa interior por uns calções e fazia-lhes enchumaços com panos de louça para que ganhassem mais realidade. Segundos depois, arrependia-me, e voltava a pôr tudo como estava antes. A seguir, voltava a experimentar outras soluções. Havia sempre mil e uma maneiras de fazer as coisas. Nada me preenchia tanto como a entrega às inúmeras opções que eu tinha ao dispor. O pormenor mais insignificante fazia-me renascer.





6



Louise veio finalmente a minha casa, mas começou por dizer que não de demoraria, o que provocou em mim um ligeiro calafrio.

Logo que entrou, senti que a sua pele brilhava na minha, senti que o seu coração batia ao mesmo tempo que o meu. Mas não sabia em que termos recebê-la porque me inibira ao ouvi-la dizer que não se demoraria. As suas palavras fizeram ruir todas as minhas expectativas para a noite.

Em poucos segundos, tive que pensar noutras coisas, agarrar-me a outras soluções, orientar-me noutros sentidos, na tentativa de evitar que Louise subitamente se arrependesse de estar ali e dissesse que tinha outro compromisso, levantando-se e saindo.

Sempre que sentia maior proximidade com uma pessoa, o que mais me afligia era o papel que os outros desempenhavam na sua vida. Os outros, que eu não conhecia, e com quem essa pessoa se relacionava. Não conseguia deixar de ver neles concorrentes sérios e perigosos, com os quais eu perderia qualquer corrida ou disputa. Por mais miserável ou insignificante que fosse a concorrência, eu tinha a certeza de estar sempre em desvantagem.

Olhava para Louise na minha frente e parecia-me ver as ideias que dançavam no seu cérebro. Tinha com certeza reparado na minha roupa exposta nas paredes, mas não fizera qualquer comentário. Nem um sorriso de aprovação, ou de rejeição. Depois, notei que se interrogou sobre quais seriam as minhas intenções ao convidá-la para me visitar, tendo em conta o ambiente que eu criara em minha casa. Num terceiro momento, percebi nitidamente no seu olhar que tivera a preocupação de me dizer que não se demoraria por simples precaução, não fosse dar-se o caso de se deparar com uma situação incontrolável. Por fim, verifiquei que, apesar de se sentir algo estranha por a minha casa nada ter a ver com a dela, conseguiu descontrair-se interiormente.

Acabou por se sentar num dos cadeirões de troncos, recostou-se, respirou fundo e disse:  Cá estamos...

Nesse momento, apeteceu-me correr para ela e abraçá-la. Mas retraí-me. A sua expressão “cá estamos”, por ser plural, por não me excluir, fez desaparecer o desânimo que as suas primeiras palavras me haviam provocado. De repente, senti que toda a concorrência tinha desaparecido. Porque Louise podia ter dito apenas “cá estou”, em vez de dizer “cá estamos”. O facto de ter dito “cá estamos” denotava uma cumplicidade íntima que vinha de encontro ao que me fazia vibrar naquela noite.

Louise sentia-se duas pessoas ao mesmo tempo. Eu via esse drama, claramente, nos seus olhos. Possuía duas sensibilidades, duas almas, duas formas de estar. Por vezes, tinha a sensação de ser homem, outras vezes tinha a sensação de ser mulher. Ela tinha estampado no rosto esses dois caminhos em que se bifurcava.

Apesar de não restarem dúvidas de que todas as mulheres eram homens e de que todos os homens eram mulheres, a verdade era que a maioria dos humanos não pensava assim, transformando o sexo numa disputa inglória entre dois seres, a pretexto de uma diferença insignificante entre os seus órgãos genitais. Era uma luta que apenas tentava desfazer a contradição íntima que os dilacerava, o sentimento de serem uma coisa e o seu oposto, simultaneamente.

Louise ficou toda a noite em minha casa. Esqueceu-se do seu rosto masculino, perdeu a compostura de mártir e fez-me esquecer tudo, levando-me com ela numa viagem sem amargura e sem relógios.

Conversámos e rímos perdidamente, chorámos e desabafámos sobre tudo o que nos doía, como se tivéssemos voltado à adolescência, por entre o eco das gargalhadas e das lágrimas que denunciava a distância que separava o presente e o passado das nossas vidas.

Por volta das oito da manhã, já tonta de sono, Louise despediu-se. Tinha que ir trabalhar. Com a mão no trinco da porta de saída, fez uma pequena pausa, rodou sobre si mesma, olhou para as minhas paredes e não foi capaz de se conter:  Parece uma loja-de-pronto a vestir, não é?!...





7



Não me deixei ir abaixo pelo comentário de Louise, mas confesso que me feriu, ao ponto de ter relegado para segundo plano a noite que passámos em conjunto, como se a sua última frase tivesse tido o condão de, em breves segundos, deitar por terra a construção de um edifício que demorara anos a erguer.

Se alguém podia compreender a minha instalação era precisamente Louise, tal a identificação que sentíamos. Se ela não compreendia a minha casa era porque também não me entendia como pessoa, uma conclusão que me chocava. A exposição do meu vestuário não era mais importante do que o convívio que mantivéramos e a intimidade que criáramos, mas era uma expressão viva e profunda do que me ia na alma. Se Louise achava que a minha casa era uma “loja de pronto-a-vestir”, isso queria dizer que não alcançara verdadeiramente o meu ser íntimo.

Depois de Louise sair e se afastar, fiquei em atitude meditativa junto à porta, como se precisasse de ter a certeza de que ela dissera o que eu realmente ouvira. Olhei para a minha roupa dependurada nas paredes e senti-me só, outra vez. Senti-me como se Louise nunca tivesse chegado a entrar na minha vida.

Quando, semanas depois, já a viver noutro local, voltei à editora para entregar mais uma tradução, deparei-me com uma Louise igual ao primeiro dia em que eu a conhecera. Recebeu-me delicadamente, mas com um ar sempre formal e distante. Percebi que a noite vertiginosa que passáramos em minha casa tinha sido rasurada da sua agenda pessoal. Ou que a ponte que atravessava a sua memória nada tinha a ver com a esplendorosa viagem que fizéramos. Louise esfriou como eu também esfriara. Assim se confirmava, mais uma vez, a nossa plena identificação.

Pouco antes do fim do mês, conforme planeara desde o início, telefonei ao senhorio a perguntar-lhe se podia esperar duas ou três semanas pelo pagamento da próxima renda. Pelo tom da sua voz, reparei que não ficou satisfeito com a proposta, mas ante a firmeza e convicção das minhas palavras, acabou por ceder, embora não se esquecendo de sublinhar que aquele seria o primeiro e último adiamento.

A minha intenção era abandonar a casa de um momento para o outro, evitando toda e qualquer prestação de contas. Para não chamar a atenção dos vizinhos, o mais seguro seria recorrer a uma carrinha na qual pudesse meter todos os meus haveres de uma assentada.

Lembrei-me de Mervin. A sua banda costumava pedir uma furgoneta emprestada para o transporte dos instrumentos. Decidi que lhe telefonaria, a saber se podia dar-me um jeito. Aproveitaria a ocasião para lhe explicar os motivos pelos quais havia deixado de viver com ele. Dir-lhe-ia que as traduções me exigiam total recolhimento e concentração, um ambiente que não podia encontrar em sua casa.

Todas as vezes que eu mudava de residência confrontava-me com a expectativa de saber o que me aconteceria a seguir, de que forma arranjaria dinheiro para o primeiro mês da próxima renda.

Mas eu confiava no meu instinto, acima de tudo. Três dias antes de terminar o prazo que combinara com o senhorio, numa das minhas raras saídas, conheci um artista de rua, de nome Andy, que ganhava a vida vendendo as paisagens que pintava.

Parei uns minutos a observar a sua técnica, a forma como misturava as cores e sombreava, recorrendo ao jogo dos claros e escuros sobre as telas. Para descontrair da tensão provocada pela presença constante de pessoas que se detinham a olhar o seu trabalho, Andy fazia intervalos, durante os quais se sentava, a pouco mais de um metro de distância do cavalete, em posição de ioga, a reflectir durante longos minutos, tornando difícil de perceber a quem passava se estava ali para vender quadros ou para se entregar à meditação.

Foi num dos instantes em que acordava para a realidade que reparou em mim. Pusemo-nos a conversar como velhos amigos. Dispensei-me de dizer que não podia comprar nenhum dos seus quadros porque Andy não parecia estar ali com esse objectivo. O que pretendia era viver, pintar, sentir pessoas à sua volta e relaxar com o ioga. Se calhasse alguém querer comprar-lhe alguma tela, melhor.

Já reparaste que o céu vai cair?  exclamou a certa altura, ante o meu ar perplexo. E explicava a sua teoria com base no argumento de que a cidade estava demasiado habitada, que não tinha para onde crescer e que, por isso, o céu se desmoronaria mais tarde ou mais cedo.  O céu vai cair..., vai tudo cair...











Capítulo IV





1



Naquela noite, fui a casa de Andy, para ver alguns dos quadros que não costumava expor, entre os quais se destacava um que mostrava o céu a desabar sobre a cidade e que ele considerava a prova mais do que científica do futuro que nos esperava. Fiquei a saber que Andy era proprietário de uma carrinha, que lhe servia de hotel sempre que passava temporadas mostrando a sua arte a gentes de outras localidades. Combinámos que ele me ajudaria na mudança, logo que eu arranjasse casa. Não precisaria de me voltar a preocupar com Mervin e com a sua furgoneta.

Desencantei um pequeno apartamento no rés-do-chão de um prédio com razoável aparência, paguei a primeira renda com parte do dinheiro que já tinha recebido da editora e telefonei a Andy.

Poucos minutos antes da meia-noite, hora em que terminava o prazo para eu pagar o segundo mês de renda da casa que me preparava para abandonar, Andy encostou a traseira da sua carrinha à porta da frente, enchemo-la com tudo o que me pertencia, sem nos darmos sequer ao trabalho de apagar a luz. Partímos na maior das calmas, deslizando em passeio dominical nocturno pelas ruas da cidade.


Achas que estamos a ser seguidos?  perguntava Andy, indiferente ao meu nervosismo.  O segredo da vida está em nunca acelerar  acrescentava, sem esperar pela minha resposta.  Quanto mais devagar andarmos, mais tempo temos pela frente!

Cada vez que falava, desacelerava, como se a lentidão da marcha o ajudasse a articular os raciocínios, enquanto eu nos imaginava perseguidos por uma dúzia de carros da polícia com sirenes a tocar por toda a cidade.  Daqui a pouco, estaremos sãos e salvos!  dizia, mastigando as palavras nos semáforos vermelhos, onde só lhe faltava fechar os olhos e pôr-se a meditar...

Notei que Andy ficou impressionado com a diferença entre a minha nova casa e a anterior. Ajudou-me a carregar as coisas para dentro, sem fazer comentários. Mas eu via nos seus olhos que ele percebia os motivos pelos quais eu tivera que trocar uma excelente residência por uma quase espelunca.

O meu novo espaço era exíguo e mal iluminado. Contudo, eu gostava dele. Porque era tudo o que eu podia possuir naquele momento. Não via grande diferença entre ser dono do mundo inteiro ou ter apenas aquele cubículo. A dimensão das coisas era relativa. De que me valeria ter quilómetros de casa à minha disposição se eu não teria hipóteses de os ocupar na totalidade? Antes trinta ou quarenta metros quadrados que eu pudesse considerar realmente meus.

Agradeci a ajuda de Andy e instalei-me. No dia seguinte, atirei-me a traduzir com unhas e dentes.

Quando dei por mim, já quase escurecia lá fora. Levantei-me da cadeira e dispensei, finalmente, alguma atenção à minha nova casa.

Estava sem ideias. O apartamento que me calhara encontrar era maior do que um quarto, mas bastante menor do que os anteriores sítios onde eu residira. Pensando bem, tive que concluir que não tinha qualquer característica capaz de estimular a veia criativa das minhas instalações. Mas procurei não desanimar.

Pus o colchão num dos cantos do quarto de dormir, a mobília de troncos na sala ao lado e o banco de jardim a separá-la da cozinha. O resto havia de ser pensado com tempo.

Apeteceu-me sair de casa e conhecer a zona onde se situava o meu novo apartamento. Eu descurava sempre as zonas. Só me interessava o buraco onde me metia. Porém, a toca que eu acabara de alugar era tão irrelevante, tão encoberta, tão sumida no contexto dos prédios vizinhos, que eu ainda não adquirira a sensação de ter desaparecido da zona antiga e ter começado a existir na nova.

De uma maneira ou de outra, nos quarteirões envolventes, toda a gente se conhecia, se avistava na ida para o emprego ou no regresso, acenava de longe, memorizava feições e formas de andar, conversava nos cafés, mas ninguém ainda se dera conta de que havia uma nova alma – a minha – nas cercanias. Por maior que fosse a indiferença que caracterizava as relações entre as pessoas que residiam nas cidades, havia sempre um brilho ténue, um esgar de sorriso, um olhar cúmplice que as levava a sentirem-se parte de um todo. Eu ainda não constava desse todo, dessa mole de consciências vagas que sofriam e se alegravam nas horas palpáveis de cada dia. Se o céu viesse a cair, como anunciava o quadro de Andy, eu tombaria sem saber onde, feito cadáver anónimo desprovido de memória e de nome, ao lado de outros milhares de mortos que não teriam dificuldades em reconhecer-se e amar-se no último fôlego das suas sepulturas.





2



Do lado oposto da rua, exactamente diante do prédio onde eu habitava, havia um bar que, à primeira vista, me pareceu convidativo. Ficava entalado entre os escritórios de algumas empresas, o que me levou a concluir que a clientela poderia ter algum interesse. Calculei que aparecessem por lá alguns funcionários qualificados, quadros experientes e atarefados, que fariam pequenos intervalos para refrescarem a garganta com uma cerveja ou subirem o nível de adrenalina com um café. Conheceriam os empregados, com quem trocariam piadas e conversas superficiais, o que não me obrigaria a grandes esforços mentais.

Se alguma coisa não me apetecia, naquele momento, era pensar. Depois de horas a traduzir, eu ainda não conseguira assentar completamente, olhar em volta, rever-me no movimento do qual fazia parte e ficar em paz com a minha consciência.

Atravessei a rua, na expectativa de que o bar não me desiludisse. A minha curiosidade cresceu quando verifiquei que não tinha a porta aberta para o exterior. A privacidade dos clientes estava garantida. Eu queria que soubessem da minha existência, mas não me agradava pensar que se poriam a falar de mim pelos pretextos mais inúteis ou ridículos.

Empurrei a porta, entrei e fui sentar-me numa das mesas do fundo, para ter uma visão ampla sobre o estabelecimento e sobre as pessoas que entrassem ou saíssem.

O interior era intencionalmente mal iluminado, vendo-se ao balcão apenas um empregado, que me olhou com cara de quem se perguntava se já me teria visto antes.

Pedi uma cerveja, o que raramente fazia, e não lhe devolvi o olhar, negando-lhe a oportunidade de qualquer aproximação. Desagradava-me pensar que alguém pudesse adivinhar que eu tinha o corpo assim ou assado ou que acabara de fixar residência na zona. Só pretendia que me identificassem sem me fazerem perguntas sobre a forma como ocupava o meu tempo, quem era, de onde vinha.

Se o céu viesse a cair, eu sucumbiria, ao menos, junto a um moribundo qualquer. Sempre que admitia a hipótese de perecer numa catástrofe, a primeira coisa em que pensava era no corpo que estaria mais perto de mim e que partilharia comigo os últimos instantes de vida. Talvez nessa altura, nesses derradeiros momentos de sabedoria, encontrasse a pessoa perfeita para me acompanhar no caminho para uma outra existência. Não interessava que fosse cadáver. Interessava era que fosse o cadáver perfeito. De qualquer forma, éramos todos e sempre cadáveres. A pior forma de o ser, porém, era alimentar expectativas acerca do nosso próprio esqueleto.

Para além de mim, não se via ninguém no bar. Faltava pouco para as nove da noite.

Demorei-me cerca de meia hora, saboreando a bebida, olhando a sombra dos móveis no chão, observando as paredes, com a mente absorta, distante, oca. O ambiente vinha perfeitamente de encontro ao vazio que me preenchia. A cerveja ajudava-me a não reflectir.

Tinha ido ao bar com a intenção de fazer parte de algum movimento, de testemunhar agitação, de sentir as coisas arder à minha volta, mas acabara por estar só, na companhia de um empregado a quem não dera quaisquer hipóteses de permuta de fluídos. Mesmo assim, achei que ocupara bem o meu tempo. A cidade também era aquela escuridão mansa que se infiltrava pelas frestas das paredes e avançava sobre o vazio dos olhos, mantendo as almas ocultas.





3



Quando voltei para casa, ao meter a chave à porta, tive a sensação de ver algo escrito na parede, uma frase recente, duas frases, em forma de pergunta, surgidas sem explicação, fora do contexto, coladas à pintura como um novo projecto plástico do qual o antigo não podia prescindir.

A toda a largura por baixo da única janela do apartamento, podia ler-se com todas as letras: “O que vai ser de ti? Não vês o que estás a fazer?”

Assim mesmo, em cor azul, uma mensagem com destinatário certo, dirigida a ninguém, talvez um vizinho.

Forcei-me a ler segunda vez, para me situar ante as perguntas, tentando perceber se me eram dirigidas, ou não. Na primeira hipótese, quem as poderia ter escrito? Com que fim? Em que momento? Na segunda, porque teriam sido escritas na parede do meu apartamento e não noutro? E porquê rente à janela?

Procurei identificar um ou outro pormenor da caligrafia que acabasse por denunciar o autor das frases. Não valia a pena. As maiúsculas disfarçavam qualquer particularidade, tal como a distância da parede a que o spray fora utilizado.

O que me custava a perceber era a intenção, o objectivo, de quem se dispusera a escrever semelhante mensagem no muro da casa que eu acabara de alugar.

Fosse qual fosse a pretensão, o certo é que fora capaz de me abalar, de me paralisar, de me arrepiar.

Convenci-me de que havia alguém que estava a querer dizer-me alguma coisa. Mesmo que a mensagem não me fosse dirigida, eu poderia sempre concluir que, de uma forma indirecta, ela teria a finalidade de me atingir. Até poderia ter o único intuito de me fazer pensar. De contrário, não teria sido escrita na minha parede, mas sim noutra, irrelevante, num pedaço de labirinto com bruma e correntes de murmúrios que se perdem no eco das cidades.

Senti que devia fazer algo, que devia reagir. Se me deixasse dominar por aquelas duas perguntas na parede – “O que vai ser de ti? Não vês o que estás a fazer?” – uma espécie de gritos sussurrados, corria o risco de perder o pé, de deixar de controlar o que se passava em meu redor.

Pensei em grades de leite. Caixas plásticas onde se guardam garrafas de leite branco e fresco. De um momento para o outro. Sem mais nem menos. Acontecia-me, por vezes, deixar-me levar assim por uma ideia que nada tinha a ver com o que me preocupava. Grades de leite empilhadas à porta de uma pequena mercearia que avistara há alguns momentos atrás, quando atravessava a rua que separava o bar da minha casa. Na altura, não liguei, mas depois de me libertar da pressão exercida sobre mim pelas duas perguntas escritas na parede foi para as grades de leite que dirigi a minha atenção. Como se, de alguma forma, pudesse utilizá-las em minha defesa, servindo-me de barricada contra alguma coisa.

Saí de casa para confirmar se realmente vira as grades ou se apenas tivera uma alucinação. Lá estavam elas, de facto, umas sobre as outras, sem ordem, abandonadas, tristes, como pessoas sem abrigo dormindo ao relento, a fim de, no outro dia, serem organizadas, expostas, enchidas outra vez, com leite novo e branco como a neve em pleno Verão.

Achei um desperdício. Estruturas plásticas, em bom estado de manutenção, para ali sem eira nem beira, ao sabor da humidade nocturna.

Não me aproximei, para que o meu interesse não desse nas vistas, para evitar que algum vizinho me detectasse ou percebesse a intenção que acabara de me assaltar.

Voltei para casa, com a certeza de que me apoderaria das grades ainda naquela noite. Instalá-las-ia no meu novo apartamento, com perícia e método, criando pequenas subdivisões dentro das divisões, o que permitiria proporcionar a ilusão de que tinha um espaço maior do que realmente tinha e, acima de tudo, de que passaria a estar sob protecção das eventuais consequências das frases escritas na parede exterior da minha casa.

Faria tudo para que não me apanhassem no furto, mas se tivesse o azar de me descobrirem não viria daí grande mal ao mundo. Não era provável que a polícia me causasse problemas só por causa do roubo de umas grades abandonadas à frente de uma mercearia. Além do mais, aquele seria um roubo mais estimulante do que o do banco de jardim, porque não continha tanto risco e, na prática, permitir-me-ia tirar dele bastantes mais dividendos na divisão dos espaços.





4



Aconteceu como eu previra. Trouxe para o apartamento todas as grades que entendi, enquanto as ia colocando à toa umas sobre as outras, até decidir como as disporia, exactamente, e como as rentabilizaria, em função do espaço apertado de que dispunha.

Se a casa era mal iluminada, ainda ficou pior, com aquela muralha de grades empilhadas, fazendo lembrar arranha-céus junto às nuvens.

Para começar, criei uma subdivisão entre a cozinha e o quarto principal. Fiquei com bastante menos espaço para circular, mas considerei que aquela “parede” se justificava perfeitamente. Assim, ao menos, os cheiros da cozinha não me incomodariam tanto. É verdade que as grades não os bloqueavam de todo, mas ficava estabelecida uma fronteira psicológica.

Depois, defini um corredor directo da porta de entrada para o quarto de dormir, montando uma segunda “parede” de caixas, que me permitiu isolar o espaço que serviria de sala de estar. Esta segunda divisória escureceu ainda mais o apartamento, porque passou a vedar a claridade da única janela que existia no compartimento, mas eu já tinha decidido habituar-me à ideia de que a luz natural era um dos aspectos fracos da minha nova casa.

No quarto de dormir, onde voltei a colocar o banco de jardim, encostei as restantes grades a uma das paredes, junto à mesa onde fazia as traduções.

Com esta solução, quem entrasse no meu apartamento daria de caras com uma quantidade de grades, mas que não obstruíam totalmente o espaço, porque as aberturas destinadas às garrafas permitiam uma visão para além da divisória, que, ainda por cima, poderia ser alterada a qualquer momento, por ser composta de peças soltas.

No dia seguinte, achei que as “paredes” de caixas eram demasiado elevadas e reduzi-as em altura, o que me levou a aumentar a estante no quarto de dormir. Eu mudava as coisas de um sítio para o outro. Nunca me desfazia delas, por pouco valiosas que fossem.

Por entre as grades, não tive outro remédio senão instalar as diversas lâmpadas coloridas que guardara do tempo em que vivera com Mervin, compensando deste modo a falta de claridade que havia na casa. Com frequência, acendia-as durante o dia, a fim de transmitir alguma animação à tacanhez dos espaços subdivididos. A luz de tons variados dava-me a impressão de eu não estar só no meu apartamento. As cores das lâmpadas representavam almas que me acompanhavam no silêncio das horas invisíveis.

No intervalo entre as traduções, deslocava-me à sala de estar, sentava-me e punha-me a olhar através das brechas das caixas. Era o que se chamava olhar para coisa nenhuma, mas eu sentia que aquela era uma das minhas formas preferidas de ver o Mundo. Vê-lo, sem correr o risco de me verem.

Com o tempo, esqueci-me das frases escritas na parede exterior da casa. Mas, um dia, voltei a reparar nelas. E voltei a afligir-me por ainda não as ter compreendido nem descodificado.

Com receio de que me pudesse acontecer alguma coisa, aumentei, de novo, a altura das divisórias de caixas, desta feita optando mesmo por fazê-las chegar ao tecto do apartamento.

Sabia que o sentido das palavras, por mais enigmática que fosse a sua origem, encontraria sempre maneira de atravessar as caixas, que eram abertas (um aspecto essencial para evitar o completo bloqueio do espaço), mas também não me restavam dúvidas de que a altura das “paredes” contribuiria de forma notória para esmorecer os ímpetos de quem estivesse, porventura, a tentar fazer-me chegar algum recado.

Pensei na hipótese de apagar as frases, sobrepondo-lhes uma camada de tinta semelhante à da parede, mas tive a certeza de que o meu esforço seria em vão. Porque as palavras haveriam sempre de romper qualquer tentativa de as suprimirem.





5



Entreguei à editora mais uma tradução, pedindo desculpa pelo atraso. Reparei que Louise não estava de serviço. Abstive-me de fazer perguntas. Pagaram-me vários trabalhos em dívida, com a promessa de que dentro de pouco tempo me dariam outros.

Em vez de seguir o caminho de casa, dei uma volta pela cidade, passando, sem me deter, por alguns dos sítios onde vivera nos últimos tempos. Abrandava o carro diante das casas, olhava e continuava em frente, com receio de que alguém me reconhecesse e encostasse à parede para ajustar contas. Eu não devia quantias de monta, mas carregava o seu peso na minha consciência. Um peso que me assustava e contribuía de forma decisiva para que eu não conseguisse esquecer o último ano da minha vida, ao contrário do que acontecera às restantes páginas do meu passado.

Mervin estaria no direito de considerar que eu estava em dívida com ele, ainda que eu tivesse desaparecido em consequência do ressentimento provocado pela indiferença da sua banda para comigo. De qualquer modo, Mervin poderia sempre alegar que estava na hora de lhe pagar o aluguer do quarto que eu ocupara durante vários meses. A casa onde residíramos juntos fora convertida numa lavandaria, conforme verifiquei ao passar pela zona. Enquanto abrandava o carro, imaginei o meu antigo espaço com montes de roupa de todas as cores e tamanhos, envoltos em cheiros nauseabundos que se elevavam no ar, acabando por misturar-se com o odor das peças já tratadas e perfumadas; imaginei Mervin e a sua banda sugados pela vertigem das máquinas de lavar, que rodavam endoidecidas de urgência, deixando apenas adivinhar as cores difusas das roupas espremidas e retorcidas no movimento frenético que lhes devorara os corpos.

Tomei cuidados especiais quando passei na casa onde a invasão de formigas provocara uma inundação no andar de baixo, não fosse dar-se o caso de o vizinho ainda me esperar de caçadeira em punho. Acelerei o carro logo que me apercebi de que tudo estava exactamente como antes, sinal de que me poderiam facilmente identificar como ainda fazendo parte das imediações.

Não me atrevi a passar na casa onde convivera com Louise e a cujo dono ficara a dever duas semanas de renda. A zona era tão calma que a todo o momento qualquer pessoa daria pela minha presença.

Bati à porta de Ralph, mas ninguém respondeu. Nem sombra dele, nem da prima. Não me admiraria se viesse a descobrir que Ralph desaparecera de vez para um país estrangeiro, a pretexto de uma futilidade qualquer. Ou que tivesse acabado por se juntar a Mervin e à sua banda.

Às três da tarde, acabei no bar junto ao meu novo apartamento. Àquela hora, seria mais intenso o efeito da frase escrita na parede da minha casa. Por isso, seria preferível contornar a situação, optando pela privacidade do bar, onde a minha protecção estaria mais do que assegurada. Aquele era um instante do dia em que a barricada de caixas erguida em minha casa não seria suficiente para travar o que quer que fosse.

O empregado do estabelecimento não era o mesmo de antes e havia dois homens sentados em mesas diferentes. Depois, entrou um casal, que veio sentar-se perto do meu canto. Ela, jovem e descontraída; ele, inibido e acanhado. Ninguém me ligou. Nem com um olhar de viés. Era como se toda a gente que entrava naquele bar tivesse a vida resolvida, indo ali parar com o mero intuito de recuperar da canseira quotidiana. Este pormenor, contudo, indicava que a minha existência não causava estranheza junto de quem me rodeava, fazendo-me concluir que eu deixara de estar só.

A dado momento, tive a sensação de conhecer aquele estabelecimento desde há longos anos, embora não me restassem dúvidas de que só lá entrara duas vezes. O casal que se sentara perto de mim falava italiano. Não percebia a maior parte das coisas que diziam. Quando cheguei a casa, pareceu-me que as caixas de leite haviam sido deslocadas ligeiramente de sítio.





6



Louise telefonou-me a propósito de uma nova tradução que a editora pretendia entregar-me. Disse-lhe que passaria por lá no dia seguinte.

Está tudo bem?  perguntou.

Respondi-lhe que sim, sem acrescentar muito mais. Mas ela não desligou o telefone e sugeriu que nos encontrássemos. Prometi que tomaríamos café quando me deslocasse à editora.

Gostas da tua nova casa?  voltou ela à carga.

Não é má...  respondi, ainda que de forma pouco convicta.

Passa-se alguma coisa?

Não.

Pareces outra pessoa...

É impressão tua.

Estou ansiosa por te ver.

Já não tenho a loja de pronto-a-vestir...

Não me digas!

Acabei por concluir que não era uma solução por aí além.

O meu comentário chateou-te?

Fez-me reflectir...

Então, vemo-nos amanhã.

Antes de desligar, ainda lhe disse que não tinha a certeza de ir à editora no dia seguinte, mas que, na pior das hipóteses, fá-lo-ia no prazo máximo de dois dias.

De repente, lembrei-me que saíra do bar sem pagar a conta. O que iriam pensar de mim? Já teriam avisado a polícia? Ou esperariam que eu lá regressasse para resolver o problema? Para evitar equívocos, voltei ao estabelecimento a correr, pedindo desculpa pelo meu lapso e liquidando a dívida.

Na altura em que me preparava para sair, esbarrei em Cat! E ela em mim. Ficámos a olhar-nos por uns segundos, como se tivéssemos dúvidas sobre a identidade da pessoa que tínhamos pela frente. Por fim, ela disse, com um sorriso arejado, que eu não teria sido capaz de lhe adivinhar há algum tempo atrás:  O que é feito de ti?!

Continuei sem palavras. Cat era a última alma que eu esperaria encontrar naquele momento. Bem disposta, confiante, parecia outra. Apesar de termos vivido na mesma casa durante uns meses, só agora me apercebia do seu poder de sedução e encantamento.

Cat disse-me que se separara de Mervin e que vivia na rua ali mesmo ao lado.

A sua casa nada tinha a ver com a que eu conhecera em outros tempos. A organização era completa, a limpeza saltava à vista. O seu bom gosto era indiscutível, embora eu fosse incapaz de viver num espaço como o dela.

Sentámo-nos, lado a lado, no sofá, e enquanto ela ia dizendo que os filhos estavam com uma amiga, reparei que dobrou os joelhos na minha direcção, deixando ver a sombra que se aninhava no ângulo apertado e fundo das suas pernas esguias.

Senti-me estremecer, mas desviei os olhos com prontidão, não fosse ela levar a mal a minha ousadia.

Sabes quem me telefonou há dias?  perguntou, como se procurasse ajudar-me, desviando a minha atenção das suas pernas.

Não imagino  repliquei, sem grande interesse.

Mervin!  exclamou, com ar visivelmente satisfeito.

E perante o meu silêncio, acrescentou que notara nele o desejo de voltar para junto da família. Mas Cat não estava disposta a isso.

Agora que já me recompus do desgosto, não quero voltar a passar pelo mesmo. E praticamente sem se deter para respirar, adiantou:  Mervin perguntou por ti... Posso dar-lhe a tua morada?

Fui para casa a pensar nos motivos que levariam Mervin a querer saber de mim. Se um dia me procurasse e pedisse dinheiro, não me atreveria a negar-lho. Mas eu não tinha a certeza de que ele o faria. Sempre me admirara que durante o tempo em que eu vivera em sua casa o nosso relacionamento nunca tivesse ultrapassado a barreira da formalidade, embora eu lhe tivesse aberto a porta do meu quarto por diversas vezes. Enquanto mantivera o casamento com Cat, ele não dava a ideia de estar preso a ela. Até acabou por trocá-la pela música. Contudo, também nunca se aproximou da minha vida, apesar das longas conversas que mantínhamos. Ao saber que perguntara por mim, esqueci a mágoa que me fizera apressar a saída da sua casa. Naquela altura, já não sabia quem me atraía mais, se Cat, se Mervin!





7



Mirei e remirei as minhas grades de leite, na tentativa de perceber se mantinham, ou não, as suas posições iniciais. A certa altura, parecera-me que não. Mas podia ter sido impressão minha.

Observei as divisórias de diversos ângulos, de lado, de frente, de trás, da cozinha, a partir do assento de uma das poltronas da sala (que proporcionava uma perspectiva diferente em altura), da porta do quarto de dormir, e convenci-me mesmo de que algo se tinha passado durante a minha ausência. Mas não sabia explicar o quê. A sobreposição das caixas não estava tão perfeita como eu a deixara. Dava a ideia de que um tufão entrara na casa através das frestas das janelas, agitando o amontoado de peças e fazendo-as deslocar ligeiramente dos sítios milimétricos em que eu as pusera. Contudo, a cidade não fora varrida por qualquer tempestade. Por isso, era difícil perceber o que tinha acontecido.

Depois de ter andado cerca de uma hora às voltas com o enigma, decidi cortar o mal pela raiz. Se calhar, nada sucedera e as caixas apenas tinham cedido em consequência da posição instável em que eu as deixara. Uma divisória afastada da parede, constituída por dezenas de unidades sobrepostas sem qualquer elo, corria sempre o risco de algum desequilíbrio.

Pareceu-me mais seguro mudar tudo. E fi-lo. Desmontei as divisórias por completo e reconstituí-as junto às paredes. Deste modo, ficava com menos divisões na casa, mas o espaço ganhava luminosidade natural (permitindo-me poupar electricidade), enquanto, por outro lado, as caixas ganhavam solidez e consistência.

A partir de então, eu tentaria perceber se voltariam a ser objecto de alguma oscilação. Se tal se verificasse, eu teria que descobrir a causa da ocorrência e agir em conformidade.

Pensei em fantasmas e almas penadas. Contudo, acabei por afastar essa hipótese. Já vivera em diversas casas e nunca me apoquentara com coisas do género. Não era agora que me deixaria soçobrar. Eu tinha feito o essencial, mudar as grades de sítio, restando-me esperar pelo que sucederia nas próximas horas ou dias.

Sempre que entrava e saía de casa, passei a dar especial atenção ao posicionamento das grades. Antes de sair, observava-as com minúcia, uma por uma, conferia medidas e distâncias, verificava a sua estabilidade. Logo que entrava, repetia a operação, passo por passo, a fim de detectar qualquer eventual alteração. Cheguei mesmo a comprar uma fita métrica, para garantir a fiabilidade dos meus métodos de verificação.

Depois, quando circulava pela casa, quando ia ali ou acolá, à cozinha buscar um copo ou à casa de banho lavar as mãos, se acontecia tocar de raspão ou tropeçar em alguma das caixas, voltava atrás e corrigia imediatamente a sua posição, não fosse dar-se o caso de horas mais tarde me esquecer do sucedido e achar que algum poder estranho causara o desvio.

Todas estas precauções fizeram com que a minha casa se tornasse uma espécie de museu, onde me era absolutamente proibido tocar fosse no que fosse. E cheguei mesmo ao ponto de quase andar em pontas de pés, quando me deslocava de um sítio para outro, para que nada bulisse no apartamento.

No dia em que me bateram à porta e fui abrir, despreocupadamente, pensando tratar-se do carteiro ou de alguém a deixar um recado do senhorio, a primeira reacção que tive, ao ver Mervin sorridente a olhar-me, foi barrar-lhe a entrada.

Fiz-te alguma coisa?  perguntou estupefacto.  Queres que volte noutra altura?

Senti revolta contra o meu próprio gesto. Porque me agradava ter Mervin dentro de casa (vi na sua cara que não me falaria em dinheiro), mas, por instinto, reagira exactamente ao contrário do meu desejo.

Fiquei sem saber o que lhe dizer. Gaguejei, recuei, pedi desculpa, flanqueei-lhe a passagem, enquanto me punha a rodar à sua volta, nervosamente, para impedir que tocasse em alguma coisa, como se a sua entrada pudesse vir a provocar alguma catástrofe nos meus redutos.

Se queres, saio já  disse, visivelmente perplexo, porventura recordando-se dos tempos em que ele e a banda se instalavam e ensaiavam sem escrúpulos no quarto que eu ocupara em sua casa.

Não, não...  retorqui.  É que têm acontecido umas coisas. Mas fica à vontade, não ligues, hoje acordei assim...





8



Mervin esboçava um qualquer movimento, por mais elementar que fosse, e eu quase saltava da minha cadeira, perguntando se desejava alguma coisa, se estava bem, se era servido de uma bebida.

O meu comportamento, porém, contradizia de tal forma as minhas palavras que, a dado momento, Mervin terá mesmo pensado que eu teria outras intenções.

Falámos da banda, das últimas novidades e concertos, dos seus projectos, de Cat, de viagens. E, enquanto falávamos, Mervin ia-se tornando mais afoito. Para o deter, e com a intenção de evitar que a sua euforia abalasse a minha estrutura de grades, não tive outro remédio senão sentar-me a seu lado.

Pareces dez anos mais novo  disse eu, sabendo que esta afirmação reforçava a sua confiança, mas, ao mesmo tempo, servia para lhe dar a perceber que não precisaria de fazer avanços precipitados porque eu estava disponível para alinhar com o que ele quisesse.

Mervin acalmou, à espera que eu tomasse nas mãos as rédeas do nosso reencontro.

Para desviar a sua atenção, e para afastar completamente o risco de o ver aflorar a questão financeira pendente entre nós, adiantei-me enquanto ia a tempo de a resposta pender a meu favor:

Não achas que é altura de fazermos contas?

A sua reacção foi mais forte do que eu previa:  Nem penses numa coisa dessas! Vim visitar-te porque tinha saudades tuas.  E esclareceu que todas as nossas contas tinham ficado integralmente liquidadas com a minha cedência do quarto para os ensaios da banda.

A sua resposta engenhosa foi um alívio. Era menos uma dívida com que tinha de me preocupar.

A partir daí, só tive que gerir com habilidade os desmedidos impulsos de Mervin. Porque, depois de considerar saldadas as nossas contas, o antigo marido de Cat passou a agir como se eu estivesse de novo em dívida com ele...

Pôs-me o braço esquerdo por cima do ombro e desatou a falar-me ao ouvido, sem que eu tivesse motivos óbvios para o repelir.

Mal percebia o sentido das palavras que ele fazia ecoar na concha da minha orelha e enquanto não encontrava pretexto para tomar uma atitude firme sobre a sua aproximação procurava a todo o custo lembrar-me de uma desculpa eficaz que me obrigasse a mudar de sítio.

Vou à casa de banho  disse eu, a certa altura.

Vê lá se não te demoras!  foi a sua resposta.

Deixei-o esperar bastante tempo, mas, de repente, precipitei-me para fora dos lavabos, quando me lembrei que estava a dar-lhe uma oportunidade para andar pela minha casa com o maior dos à vontades, pondo em risco a estabilidade das minhas caixas. Ao abrir a porta, confirmou-se o que eu temia: Mervin tinha-se posto a sacudir a minha instalação, a fim de verificar a sua segurança.

Não mexas aí!  foi tudo o que consegui dizer.

Estava só a ver se isto não me caía em cima  justificou-se, surpreendido com a minha atitude.

Não consegui esconder a decepção que senti ao aperceber-me da inutilidade dos esforços que despendera para controlar a estabilidade da minha estrutura de grades. Em poucos minutos, Mervin fizera ruir todos os meus cálculos e medições, como se os seus abanões equivalessem a um abalo sísmico com efeitos devastadores numa quantidade de prédios, restando-me fazer o levantamento dos estragos com paciência e método.

Não estive com meias medidas. Disse-lhe que sentia uma forte indisposição, que tinha comido qualquer coisa estragada, que estava com vómitos e prometi que lhe telefonaria no dia seguinte para combinarmos novo encontro.

Mervin ofereceu-se para me levar ao hospital, se eu assim o desejasse, mas a minha resposta foi de tal forma desmotivadora, que não se atreveu a insistir.

Já perto da saída, ainda perguntou se dissera ou fizera alguma coisa que me ofendesse, mas o sorriso com que lhe respondi foi mais do que suficiente para o tranquilizar.

Até amanhã..., vê lá se melhoras, até amanhã...  repetia ele, de forma convincente, acenando até desaparecer.











Capítulo V





1



A forma hábil como Mervin saldou as nossas contas, fazendo-me logo depois sentir em nova situação de débito, deu cabo de todo e qualquer sentimento que eu pudesse nutrir por ele. Preferia manter o meu relacionamento com Cat, cuja transparência e ligeireza poderiam mesmo ser afectadas por um eventual envolvimento com Mervin.

O melhor era não voltar a vê-lo. Nem que tivesse de mudar de casa outra vez. Até porque, mais dia menos dia, perdê-lo-ia de vista, quando ele sumisse de novo com a banda. Se me deixasse levar pelo seu magnetismo, acabaria por ser apenas mais uma vítima de mais uma relação acidental. Eu tolerava flirts, optando por eles, até, muitas vezes, em detrimento de outras situações mais comprometedoras, mas não admitia ser vítima de quem quer que fosse. Já me bastara o que tivera de gerir com o desaparecimento da prima de Ralph. A fim de não perder o comando das situações e não me ferir, eu chegava a escolher de forma cirúrgica os momentos mais auspiciosos para terminar as relações em que me envolvia. Fazia-o abruptamente, sem pensar nas consequências. Depois, ressentia-me. Não por muito tempo, mas ressentia-me. Remoía o assunto durante umas horas e esquecia.

Telefonei a Andy, perguntando se tinha conhecimento de alguma casa para alugar. Ele disse-me que acabara de saber de um apartamento vago há uma quantidade de tempo no mesmo andar do prédio em que vivia uma amiga sua. Pelos vistos, até constava que o apartamento não tinha dono.

Descobri que realmente assim era. O espaço estava abandonado há cerca de dois anos, sem que jamais alguém o tivesse reclamado. A amiga de Andy achou que não haveria qualquer problema se eu me mudasse para lá. Já outras pessoas o haviam feito.

O apartamento ficava no quinto andar de um edifício visivelmente degradado, cujo elevador não funcionava há mais de dois meses. Mas não estive com grandes hesitações sobre o que fazer.

Enchi a carrinha de Andy com os meus haveres e preparei-me para ocupar uma nova casa, sem prestar contas a quem quer que fosse.

Quando cheguei ao apartamento, contudo, dei de caras com um conhecido da amiga de Andy, que acabara de se instalar há menos de meia hora! Pensei que as minhas hipóteses tinham caído por terra. A amiga de Andy, porém, apresentou-nos – o intruso chamava-se Fred – disse que não havia problema em nos instalarmos os dois, que até era melhor para ambos, e despediu-se, de forma apressada, com cara de quem não desejava envolver-se muito mais num imbróglio que não lhe dizia respeito.

Notei que Fred não ficou radiante com a ideia de partilhar a casa comigo, mas ante a impossibilidade de se opor, acabou por se conformar.

Também não tive outra solução. Não me apetecia voltar para o buraco de onde saíra, nem que fosse para evitar de vez as frases escritas na parede que, no fundo, me abalavam mais do que eu pretendia fazer crer. Havia coisas que eu não conseguia contornar. Alguns cartazes publicitários, por vezes, pareciam ser-me dirigidos. Eu sabia que não o eram, mas não conseguia deixar de pensar o contrário.

Fred só pensava em cozinhar e comer, embora a sua aparência física não desse quaisquer indicações nesse sentido. Falou-me das especialidades que confeccionava e garantiu-me que não passaríamos fome.

Na sua óptica, todo o poder estava na culinária. Porque era através da alimentação que se controlava a sobrevivência e a saúde das pessoas.

É o poder das entranhas!  afirmava, passeando pela casa.  É nas entranhas que se decide tudo. E quem cozinha assume esse poder absoluto. Até o sexo depende do que se come... Haverá maior poder do que o da culinária?...

Fred explicava a vida inteira com base na alimentação: bom e mau humor, cólicas, sabores, digestões, estados de alma, dúvidas, realizações, apetites, atracções! A seu ver, não era por acaso que havia o hábito de convidar para jantar pessoas com quem se pretendia estreitar relações, de negócios ou de outro cariz. Era sempre a sedução que estava em causa. A sedução plena só acontecia à mesa das refeições.

A sua filosofia parecia-me pertinente, mas eu nunca dera especial atenção à culinária. Qualquer coisa me servia para encher o estômago, desde que eu tivesse um local para viver. Enquanto, para Fred, todo o poder estava na alimentação e em quem a confeccionava, para mim, todo o poder estava na casa, que servia de abrigo e protegia do mundo à volta. Era na casa que tudo se resguardava e resolvia, que se descansava e convivia sem restrições.





2



O apartamento que Fred e eu passámos a ocupar estava em condições deploráveis. As paredes precisavam de pintura, o autoclismo não funcionava, a fechadura da porta de entrada desaparecera, o chão não era varrido há meses...

Perante o que se me deparava, afligia-me pensar na disposição dos meus objectos e peças de mobília num espaço que não era meu nem de Fred, mas que, ao mesmo tempo, pertencia aos dois. Eu recebera o convite da amiga de Andy, ao passo que ele simplesmente aparecera e se instalara, embora o tivesse ocupado antes de mim.

Era a primeira vez que me deparava com uma tal situação. Por se tratar de uma casa que não era de ninguém, eu não possuía quaisquer direitos sobre ela e, além de tudo, tinha que partilhá-la com outra pessoa que me era completamente desconhecida.

Tal como a culinária não tinha qualquer significado para mim (eu mal sabia fritar um ovo), duvidava que Fred aceitasse a minha forma de ser e de estar numa casa. Se calhar, ridicularizaria a minha mobília de troncos, defendendo que era preferível sentarmo-nos no chão. Pelo que me era dado ver, ele não trouxera quaisquer móveis ou apetrechos. Tinha deixado cair uma mochila no soalho junto à porta da cozinha e nada mais.

Arrastei o meu colchão para um dos quartos de dormir, depois de perguntar a Fred se não se opunha a que eu o fizesse, e preocupei-me em guardar no roupeiro todas as minhas coisas, de forma a prevenir qualquer desaparecimento menos oportuno.

Por volta do meio-dia, fui dar uma volta, para arejar as ideias. Deambulei pelas ruas, com rumo incerto, olhando para todo o lado sem ver coisa nenhuma. Agora que eu tinha uma ocupação profissional, poderia amealhar algum dinheiro, uma vez que nos próximos tempos nem precisaria de pagar renda de casa. A não ser que, por qualquer motivo, me desentendesse com Fred, vendo-me na obrigação de procurar outro sítio para viver. O que pressentia, contudo, era que seria mais fácil Fred se desentender comigo, até porque eu já passara pela experiência de viver em casa de Mervin, demonstrando capacidade de adaptação a várias situações e imprevistos. (Não é qualquer pessoa que permite a invasão regular do seu espaço por uma banda de música ensurdecedora).

Entrei numa pastelaria, sentei-me e pedi um café. Por mais que procurasse serenar interiormente, não conseguia deixar de pensar no meu novo companheiro de casa. Alto, quase esquelético, de feições angulosas, Fred era o tipo de pessoa que não parecia dar ouvidos a quem quer que fosse. A avaliar pelo modo como falava da culinária, sobre a qual tinha uma opinião sem dúvida sólida e difícil de contrariar, eu tinha a nítida primeira impressão de que não deveria aproximar-me dele. Nunca se sabia até onde ia a sua sede de poder. Fred podia muito bem tentar controlar a vida das pessoas através dos pratos que confeccionava. Não faltava quem o tentasse fazer, recorrendo a penas de galinha, cabelos de pessoas e patas de animais para condimentar refeições. Naquele momento, eu não podia excluir qualquer cenário.

Estava nestas reflexões quando se aproximou de mim um vagabundo desgrenhado, de olhos quase a sair das órbitas, com ar de quem não sabia o que era água há muitos meses e que me disse de forma peremptória:

Toda a gente tem o destino traçado! Mas, no seu caso, há um problema...

Não soube que responder. Notando a minha vontade de sair dali quanto antes, o homem implorou que o ouvisse.

Não quero dinheiro, esteja à vontade. Deixe-me só tentar perceber o que está errado no seu destino. Simples curiosidade científica.  E após uma ligeira hesitação, perguntou se eu me importava de olhar para cima, enquanto ele se agachava na minha frente, quase de joelhos, como se procurasse descobrir alguma sombra malévola na zona baixa dos meus globos oculares.

Não se aproxime de quem lhe quer mal  acrescentou, com voz tensa.  Ele não vai ficar de braços cruzados. Acautele-se!

Ao fim de dez minutos, após diversas ameaças que se encadeavam umas nas outras, consentiu que eu fosse à minha vida, deixando por esclarecer o enigma do destino que me calhara. Deu-me um papel amarrotado com o seu endereço e pediu que o visitasse para futuras averiguações.





3



Quando voltei ao apartamento, verifiquei que a cozinha estava cheia de lixo: cascas de ovo e alfaces pelo chão, restos de cebola, pedaços de batata, cabeças de alho, uma garrafa de óleo vazia...

Mas antes que eu pudesse fazer qualquer comentário, Fred convidou-me prontamente para almoçar:  Estou a preparar uma refeição deliciosa! Fazes-me companhia?

Com a imagem do vagabundo ainda implantada fortemente na memória, menti, dizendo que tinha acabado de comer. Eu olhava para Fred e só via o miserável que me interpelara o destino de olhos esbugalhados para o vazio. Estranhamente, via-o com uma nitidez quase luminosa, enquanto mantinha os olhos em Fred. Depois, vi Cat e vi Mervin. Vi tudo isto em Fred. Só que Mervin não era Mervin, exactamente, mas Cat com a cor de pele de Mervin. Intrigava-me que tais visões acontecessem enquanto olhava para Fred. Não muito tempo a seguir, ao fim de breves segundos, Cat tornou-se a protagonista de sucessivas e repentinas mudanças corporais, um fenómeno que eu não conseguia controlar nem explicar. Tinha os olhos fixos em Fred e, ao mesmo tempo, via Cat à minha frente, sobrepondo-se ao vagabundo e a Mervin, à pele de Mervin, o que a tornava particularmente esbelta e apetecível, em contraste com o Fred pegajoso e sebento que eu tinha diante dos olhos.

Ao fim de pouco tempo na casa, apercebi-me de que Fred só possuía um par de calças de ganga, que usava todos os dias e com as quais até dormia durante a noite. Uma vez, vi-o sair do lavatóriuo no momento em que se preparava para fechar a braguilha e notei que nem usava cuecas.

Certa manhã, veio acordar-me à cama e, no momento em que me voltei e abri os olhos, achei que estava demasiado próximo de mim, dando-me conta do cheiro nauseabundo que exalava.

Sabes que horas são?  dizia, como se tivesse a obrigação de zelar pelas minhas horas ou pela minha vida.

Eu sentia que o seu gesto não era inocente e que se aproveitava do facto de eu estar a dormir para se impor junto de mim. Fred era um sedutor. Porque se entregava às causas com alma. Fazia-o com tanta convicção que acabava por votar todo o resto ao abandono. Se não fosse descuidado em termos de higiene, reconheço que até poderia nutrir por ele algum sentimento. Fred era o homem mais atraente que eu conhecera nos últimos tempos. Se calhar, haveria quem apreciasse a sua forma desleixada de ser, que tinha uma óbvia componente de paixão. Quem se deixasse cair nas malhas de Fred deparar-se-ia sempre com extrema dificuldade em sair delas. Dava-me a impressão de Fred ter consciência disso, exactamente, pela maneira como se mantinha perto da minha cama, pouco faltando para se sentar na beira do colchão.

Não te levantas?  insistia ele, parecendo disposto a puxar-me a roupa da cama para os pés.

Confiei, porém, em que não ousaria chegar a tal ponto. Ou limitei-me a esperar para ver até onde iria a sua coragem.

Vendo que eu não estava na disposição de reagir às suas palavras, manifestando clara intenção de continuar entre os lençóis, Fred acabou por se afastar e sair do meu quarto. Mas a recordação do incidente nunca me abandonou.

Quando voltei a ficar só, fiz nova ligação mental a Cat, então de forma intencional e controlada, já sem imagens sobrepostas. Decidi que lhe telefonaria naquele dia, sem falta. Se não pudesse sair, iria vê-la de novo a sua casa. A forma como estivera comigo não deixava margem para dúvidas quando ao prazer que a minha presença lhe proporcionava. Depois das experiências com a prima de Ralph, com Louise, com Mervin, restava-me a vaga esperança de estabelecer com Cat um relacionamento mais frutuoso. Cat era mãe de três filhos, mas ostentava um ar juvenil, que lhe dava uma graça singular, sobretudo depois de ter passado a viver sem Mervin.





4



A primeira vez que apanhei Fred fora de casa, enchi-me de coragem e dispus a minha mobília de troncos na sala de estar. Não teria sido capaz de o fazer na presença dele. Só para não enfrentar a expressão com que reagiria à minha atitude. Quando chegasse, havia de dizer o que entendesse, mas nessa altura eu já sentiria confiança suficiente para o enfrentar. Uma ou duas horas era o tempo que eu precisava para ganhar segurança.

Dei uma vista de olhos na arrecadação e deparei-me com dezenas de garrafas de vidro, abandonadas, se calhar, desde o tempo do anterior inquilino. Algumas eram vulgares, mas outras tinham formas bizarras, podendo mesmo vir a despertar o interesse de algum coleccionador.

Acocorei-me à entrada da arrecadação e pus-me a tirar as garrafas, uma por uma, com jeito e atenção, não fosse dar-se o caso de alguma se me escaqueirar nas mãos. Muni-me de um pano de pó e fui-as limpando, esfregando, lavando, alinhando em cima do mesão da cozinha.

Não me restavam quaisquer dúvidas de que aquelas garrafas dariam um ar invejável à sala de estar, dispostas no chão aparentemente ao acaso. Duas ou três encostadas num canto, uma tombada junto ao cadeirão duplo, mais três ou quatro aqui e ali, como se alguém que em tempos imemoriais morara naquele apartamento tivesse o hábito de as ir deixando cair à medida que as esvaziava.

Ao fim de meia-hora, a sala estava inundada de garrafas de vidro transparente e opaco, umas brancas, outras verdes e castanhas. Apenas uma tinha a cor azul. Pu-la no meio da sala. Imponente e solitária, com um gargalo esguio e longo. Parecia uma escultura, um troféu raro.

Eu não tinha o hábito de ingerir bebidas de qualquer espécie e, embora não conhecesse os hábitos de Fred, nunca o vira beber fosse o que fosse. Por isso mesmo, todas aquelas garrafas expostas na sala de estar faziam passar uma mensagem que nada tinha a ver com a minha vida quotidiana, o que me dava a sensação de aquela ser mais uma muralha que me rodeava. Uma muralha com vários flancos transparentes, alguns deles deixando-se atravessar pela luz que coloria as sombras estendidas no soalho à medida que a claridade da janela ia obedecendo aos humores do sol. Uma muralha frágil, que alguém erguera nos fundos da arrecadação e que eu me encarregara de desconstruir, peça a peça, ao longo de todo o espaço da sala de estar.

Na totalidade, contei mais de oitenta garrafas de variados géneros e feitios. As vulgares passavam perfeitamente despercebidas entre as que tinham formas exóticas. A sala de estar ficou com um ar completamente novo. Nem nos espaços mais vanguardistas tinha alguma vez presenciado instalação semelhante.

Só depois de ter disposto todas as garrafas me apercebi de que não dera uma varridela no chão imundo. Para fazer uma limpeza decente àquela divisão da casa, agora, teria que tirar todas as garrafas dos seus sítios, uma ideia que não me agradava, por mais que a sujeira me arreliasse. É que, para além de todo o trabalho que tivera a colocá-las nos pontos que me pareciam mais adequados, tendo em conta a forma e a cor de cada uma, ser-me-ia impossível voltar a dispô-las da mesma forma, caso as retirasse para varrer a sala. Ao mesmo tempo, porém, considerava inadmissível não fazer desaparecer toda aquela porcaria.

Só me restou a hipótese de varrer o lixo e os rolos de pó, circundando as garrafas com a vassoura, cuidadosamente, para que nenhuma deixasse de estar no seu local exacto. Provavelmente, demorei mais do que demoraria se tivesse desviado todas as garrafas para um canto e voltado a colocá-las nas posições iniciais, podendo mesmo ter descoberto ângulos mais favoráveis para algumas delas, mas senti um gáudio enorme por ter varrido a sala sem pôr em causa a disposição que eu decidira atribuir a todas e cada uma das garrafas.

Pela primeira vez, desde que vivia por minha conta, convenci-me de ter concebido uma instalação que não corria o risco de ser comparada com nenhuma outra coisa. Agora, só faltava esperar pela chegada de Fred e testemunhar a sua reacção.





5



Fred chegou por volta das duas da tarde. Entrou cheio de pressa, mal me olhou e não fez qualquer comentário sobre o que eu tinha feito na sala. Duvidei mesmo que tivesse reparado no destino que eu dera às garrafas e na limpeza que diligentemente efectuara. Fechou-se no seu quarto por mais de meia hora, deixando-me às aranhas. Podia não ter gostado da minha obra, podia não ter gostado de ver a mobília de troncos num espaço comum aos dois, mas não lhe custava nada ter agradecido o trabalho que eu tivera para limpar e tornar apresentável a principal divisão do apartamento.

Contudo, a ausência de reacção por parte de Fred devolvera-me alguma serenidade. Ao menos, não perdera a cabeça, nem desatara aos pontapés contra a minha instalação. A fúria que eu lhe adivinhava no fundo dos olhos e que pressentia ser capaz de explodir nele, a qualquer momento, pela razão mais oculta ou indizível, teimava em não aparecer.

Fechei o livro que tinha nas mãos e telefonei a Cat. Fez-me bem ouvir a sua voz do outro lado da linha. Dirigiu-me várias expressões de afecto e não hesitou em combinar encontro comigo no bar que ficava junto ao meu anterior apartamento.

Fui ao quarto mudar de roupa e quando me preparava para sair, já no patamar da escada comum, dei de caras com a amiga de Andy, que me fez uma festa e quis dar uma vista de olhos na casa.

Fiquei a saber que se ausentaria por vários dias, na companhia de Andy, a fim de o apoiar numa exposição de quadros em outra cidade.

A amiga de Andy ficou emocionada com a minha instalação de garrafas e elogiou, especialmente, a mobília de troncos. Falava alto, apontava pormenores, ria e destacava esta ou aquela solução. A garrafa azul, exposta no meio da sala, deixou-a fulminada.

Um verdadeiro ex-libris!  disse, ante o pasmo com que eu assistia aos seus comentários, mostrando-se tão sensibilizada com o conjunto da minha obra que referiu por várias vezes a intenção de sugerir a Andy que a pintasse.

Uma natureza morta originalíssima  sublinhou.

Intrigou-me o facto de Fred continuar fechado no quarto, apesar da efusão provocada pelo surgimento da amiga de Andy, mas não perdi tempo a pensar no assunto, até porque imaginava que Cat já devia estar preocupada com a minha demora. Todavia, eu tinha que dar atenção à amiga de Andy, que era a primeira pessoa a apoiar entusiasticamente uma das minhas instalações caseiras, ainda por cima querendo que um amigo a eternizasse num óleo, o que não deixava de me embevecer.

Quando cheguei ao bar, Cat já se preparava para sair, farta de estar à minha espera. Depois de lhe pedir desculpa, fomos dar uma volta pelas redondezas. Descobrímos um recanto ajardinado, onde nos sentámos a conversar. A certa altura, reparei que Cat tinha a perna encostada à minha, mas concluí que não passaria de um acaso. Durante todo o tempo que vivi com ela nunca lhe detectei qualquer ousadia e mesmo no nosso mais recente encontro notei que se preocupara em desviar a minha atenção das suas pernas. É verdade que, agora, estava afectivamente livre de Mervin, mas nem assim, pus a hipótese de haver qualquer segunda intenção no seu gesto.

Até quando Cat se pôs a massajar um dos meus joelhos, tive dúvidas sobre o que realmente pretenderia. Acariciava-me a rótula sob as calças com a sua mão macia e continuava a falar de tudo o que lhe vinha à cabeça, sem nunca me fixar nos olhos.

Depois, sem me dar tempo de reflectir sobre o que estava a acontecer, levantou-se de rompante, disse que estava na hora de voltar para casa, deu-me um beijo nos cabelos e desatou a correr sem mais explicações. Deixei-me ficar onde estava, no meio do turbilhão de ideias que subitamente tomou conta de mim, vendo-a liquefazer-se por entre a multidão que àquela hora saía dos empregos.





6



Ainda sob o efeito da vertigem que Cat me provocara, entrei em casa e não quis acreditar no que os meus olhos viam: todas as garrafas tinham desaparecido da sala! Depois, verifiquei que a mobília de troncos estava empilhada no meu quarto, junto ao tubo de escape e ao banco de jardim, que eu deixara a servir de cabide à beira da cama.

Fiquei sem sangue. Ou como se o sangue me tivesse paralisado nas veias. Senti que me tinham arrancado a alma, desfazendo-a em pedaços. Dificilmente alguma coisa me poderia ter provocado tamanho constrangimento. Por qualquer motivo, naquele preciso momento, vieram-me à ideia as crianças que passam fome em África. Não me parecia haver muita lógica na associação, mas foi essa a visão que passou no meu cérebro.

Sentei-me na cama, tentando organizar as ideias. Devia ir ao quarto de Fred verificar se ele lá estava e pedir-lhe contas pelo que sucedera ou devia esperar que a situação se esclarecesse?

Quando me magoavam, quando eram injustos comigo, quando me faziam alguma coisa pelas costas, eu desnorteava. Por saber que assim era, e por não conhecer Fred muito bem, tentei manter-me onde estava, tentei apaziguar-me interiormente, tentei controlar os nervos que me faziam estremecer dos pés à cabeça. Apesar de todos os esforços que fazia, porém, eu não tinha a mínima dúvida de que só conseguiria domar a besta que se libertava dentro de mim por um prazo de poucos minutos.

Era o que faltava terem mexido nas minhas coisas sem me pedirem autorização. Era verdade que eu também não pedira a Fred autorização para o que fizera, mas ele até me devia agradecer o favor de eu ter dado cabo de toda a porcaria que enchia a sala.

Eu não acreditava que alguém tivesse entrado no apartamento e feito desaparecer as garrafas, poupando a mobília de troncos. Aquilo só podia ser obra de Fred. Por alguma razão, ao entrar e dar de caras com a minha instalação, ele quase correra a encerrar-se no seu quarto. Devia ter-se posto a remoer sobre a situação e esperado que eu saísse para, então, dar azo ao espírito vingativo que se escondia dentro dele.

Não me aguentei mais e dirigi-me ao quarto de Fred. Bati, não obtive resposta. Dei a volta ao puxador, verifiquei que estava trancado. Desferi dois socos na porta, dizendo:

Abre! Sei que estás aí dentro.

O silêncio manteve-se. Fiz contas à possibilidade de entrar por arrombamento. Mas não tinha a certeza de ser capaz de rebentar a porta com os pés ou com a ajuda dos ombros. Mesmo que o viesse a conseguir, teria sempre que pensar na reacção de Fred. Eu já o imaginava a enfrentar-me de pistola em punho! E ao pensar nessa eventualidade, devo reconhecer que me inibi. Lembrei-me da taxista que viera atrás de mim com uma barra de ferro erguida acima da cabeça. Retrocedi. Era melhor não exagerar, para evitar um banho de sangue. Vendo bem as coisas, só tinham desaparecido as garrafas, que não eram minhas. O resto apenas havia sido mudado de sítio. Qualquer pessoa com dois dedos de testa reconheceria que a ocorrência, ainda que abusiva, não era dramática.

Estava eu entregue a estes raciocínios no meio da sala de estar, quando vi a sombra de Fred surgir na porta de entrada. Esforcei-me por não o olhar, até perceber o que ele faria no instante logo a seguir. Mas, pelo silêncio que se instalou (deixei de ouvir os seus passos), percebi que não tinha passado da porta e que, por sua vez, ele também estaria a tentar prever a minha reacção.

Enrijeci os músculos, tentando precaver-me contra qualquer eventualidade, e decidi encará-lo, pedindo explicações sobre o sucedido.





7



Não tive hipóteses. Fred foi o primeiro a falar, ordenando-me que eu abandonasse a casa, imediatamente!

A sua atitude surpreendeu-me, pela maneira fria e definitiva como se exprimiu. Nunca o tinha visto tão transtornado. Nunca vira alguém, de resto, tão fora de si, absolutamente imóvel e de olhar fixo no vazio.

Todos os argumentos que eu tencionava usar contra ele atravessaram-se-me subitamente na garganta de tal forma que não fui capaz de responder com a prontidão que me parecia adequada.

Ao fim de poucos segundos, consegui respirar e repliquei que ele não me podia expulsar de uma casa que não lhe pertencia. As minhas palavras soaram-me a pouco. Mas, tendo em conta a postura do meu antagonista, senti que dificilmente poderia fazer melhor. Já não havia sido mau ter-me atrevido a dizer alguma coisa...

Fred era, obviamente, um atirador implacável, que disparava antes de saber que tipo de inimigo tinha pela frente, obrigando a vítima a reagir em posição de inferioridade, depois de ter a primeira bala metida no corpo. Disparava por fases, com método. Fazia-o sem pensar. Era uma atitude natural nele.

Procedera de igual forma quando me conhecera e só falara de cozinha e da importância decisiva da alimentação no quotidiano.

Apesar de tudo, eu não estava à espera de um comportamento tão extremado. Uma coisa era disparar com teorias sobre culinária, outra coisa desatar aos tiros sobre uma pessoa, obrigando-a a sair de casa, só por causa de uma exposição de garrafas.

Durante todos aqueles dias, partilhara a minha privacidade com um psicopata. Considerei-me feliz por não ter levado muito tempo a percebê-lo. De outra forma, se tivesse sido eu a explodir em primeiro lugar, a situação podia ter tido consequências desastrosas.

Sem responder ao argumento de que não tinha legitimidade para me expulsar, Fred deu-me vinte minutos para sair e esvaziar a casa de todos os meus haveres.

Podes dizer-me o que fizeste às garrafas?  perguntei com a voz mais normal possível, embora não tencionasse levá-las comigo, nem que fosse para nunca mais me recordar da cena que vivia naquele momento.

Tens vinte minutos para te pôr a andar  insistiu ele.

Pensei pedir ajuda à amiga de Andy, mas logo a seguir lembrei-me de que tinha ido de viagem.

Sem perder tempo com mais falatório, e porque era evidente que Fred não estava disposto a discutir coisa alguma, nem direitos, nem legitimidade, nem motivos razoáveis de qualquer espécie, avancei para o meu quarto e pus-me a guardar tudo o que tinha. Só o colchão deu-me uma trabalheira. Descer todas aqueles escadas, carregando uma quantidade de tralha, que eu não tinha coragem de deixar atrás, ainda por cima sabendo que Fred estava no meio da sala a contar os minutos, deixou-me à beira do colapso. Na última volta, já mal conseguia respirar.

Enquanto descia e subia escadas, com montes de coisas às costas, nas mãos, nos braços e sob os sovacos, eu só pensava na forma como me vingaria do que Fred acabara de fazer. Nem que tivesse que contratar dois ou três atiradores profissionais, ele havia de pagar pelo seu acto. Jurei mil vezes que não lhe daria o prazer de ter a última palavra.

Quando trazia o banco de jardim às costas, na curva entre o terceiro e o segundo andar, já sem forças, escorreguei e caí, estatelando-me a todo o comprimento e rebolando por uma quantidade de degraus. Nos milésimos de segundo que durou a queda, pensei que a minha hora tinha chegado, que partiria as pernas e a coluna, que não escaparia com vida. Ao fim e ao cabo, só esfolei um tornozelo. A minha revolta era tal que pouco ou nada senti.

Levantei-me, tentei meter o banco no carro, mas não tive hipóteses. Para conseguir fechar as portas do veículo, vi-me na necessidade de o esvaziar de muita coisa que acabei por amontoar no tejadilho, onde também prendi o banco de jardim. O meu carro parecia uma torre presa por fios, uma instalação ambulante que eu me encarregaria de exibir pela cidade como uma atracção de circo.

Arranquei, fazendo contas ao preço que me poderia custar a contratação dos indivíduos que limpariam o sebo a Fred. Os riscos que eu corria eram mínimos. As autoridades não se preocupariam com a morte de um paranóico, quando dessem com o seu cadáver cortado em postas (era preciso poupar nos gastos que o encobrimento do crime implicaria) no meio de uma casa que nem dono tinha.

Pensava na vingança e em muito mais, repensava e voltava a pensar na forma de transformar a vida de Fred num inferno, mas sabia, à partida, que, dentro de pouco tempo, esqueceria tudo. Esqueceria o seu rosto, o seu fedor, as suas palavras cortantes, os seus olhos fundos sem cor. Era mais fácil esquecer, por mais que me apetecesse voltar atrás para o ajuste de contas. Eu esqueceria. Mas nem por isso deixaria de me deleitar com a minuciosa elaboração do plano que visava eliminá-lo do meu passado.











Capítulo VI





1



Naquela noite, dormi no carro. Não quis pedir ajuda. Para mendigar abrigo a alguém conhecido, teria que contar o que acontecera com Fred e eu não estava em condições de o recordar nem sequer aos meus botões. Para escapar aos problemas, via-me na necessidade de escapar às pessoas. Eu não tinha dúvidas de que, para manter a sanidade, devia ficar só, durante as próximas horas.

Deitei-me sob os cobertores no banco de trás, confundindo-me com o emaranhado de roupas e tralhas que se amontoavam por todos os recantos do veículo até ao tejadilho e deixando apenas as narinas de fora para respirar. Se alguém passasse e olhasse não adivinharia a existência de um corpo vivo aninhado dentro de toda aquela chaparia retorcida de coisas a transbordar. Caí no sono em poucos segundos. Dormi sem dar acordo de mim.

Ao despertar, na manhã seguinte, o meu corpo era uma confusão de tornozelos doridos e esfolados, pelo esforço que fizera na mudança precipitada de casa e pela queda que dera nas escadas. Cada movimento que fazia rasgava-me a carne, os músculos, os tendões, repuxando os nervos, os filamentos, as artérias. Cheguei a pensar que não conseguiria sair do carro pelos meus próprios meios. Ao fim de algum tempo, contudo, aqueci e ganhei coragem para me levantar.

Saí do automóvel em câmara lenta, aos tropeções. Pus-me a ginasticar os músculos mesmo ali no parque de estacionamento onde passara a noite. Apesar da claridade que me estonteava, a primeira coisa em que pensei foi na tradução que tinha entre mãos e à qual não chegara a adiantar uma linha durante o tempo em que vivera com Fred. A editora ainda não me havia pago todos os trabalhos, mas se eu queria vir a receber os restantes e manter a fonte de receita nos próximos meses não podia continuar na senda do desleixo em que caíra.

Para ter condições de voltar a traduzir, tinha que arranjar nova casa sem perda de tempo. Sentei-me ao volante, fundindo os gemidos das minhas articulações com as do assento. Ajeitei o cabelo no espelho retrovisor e passei pelo rosto uma ponta de lençol que puxei do banco de trás.

Quando me preparava para sair dali, uma mulher que aparentava estar na casa dos trinta veio pedir-me uma informação, acabando por me perguntar se eu não me importaria de a levar a casa de uns amigos que viviam a pouco mais de um quilómetro de distância. Como não tinha que fazer, acedi.


À chegada, convidou-me a entrar com ela. Entrei e só voltei a sair de lá ao cabo de semanas. Instalei-me, sem ter recebido convite. Como num abrigo em que há lugar para todos.


Passei a partilhar a casa com sete, oito, nove pessoas, nunca soube quantas, em rigor, Bill, Nat, Sus, Ric, Jul..., entre outros nomes que entravam e saíam, constantemente, sem se saber ao que vinham ou ao que iam.

Durante todo o dia e toda a noite, ninguém fazia nada de concreto na grande casa que me coubera em sorte. Alguns jogavam cartas, outros dormiam. Por vezes, sabia-se que este ou aquele se deslocava a algum sítio, mas não passava disso. Também acontecia Nat ou Ric trazerem um amigo ou alguém bater à porta de surpresa, juntando-se aos que já lá estavam.

As minhas grades de leite, mobília de troncos, banco de jardim e tubo de escape foram distribuídos por diversos quartos.

À semelhança de toda a gente que ali vivia, eu não tinha poiso certo. Dormia onde calhava. No sofá, no chão, detrás de uma porta! Raramente conseguia lugar num dos diversos colchões, onde havia sempre duas ou três pessoas a dormir. Naquela casa, dormia-se mais do que eu alguma vez tinha visto.

Inicialmente, quando permiti que as minhas coisas fossem colocadas ao deus dará pela casa, ainda pensei que, posteriormente, poderia vir a organizá-las, dar-lhes um sentido, dispô-las conforme um plano estético coerente. Mas isso nunca veio a acontecer. Porque ao cabo de poucos dias, já os meus objectos tinham sido absorvidos pelo movimento das pessoas, pelas sombras das roupas dependuradas nas portas, pelo ruído das vozes. O meu sofá de troncos e o banco de jardim passaram a servir de cama, os cadeirões e o tubo de escape de cabides, as grades de assentos e contentores de lixo.





2



Com o tempo, fui percebendo que as instalações de objectos com que eu tinha por hábito preocupar-me em cada casa onde vivia eram perfeitamente dispensáveis. Na residência que me acolhera substituía-as, agora, a presença constante de pessoas. Lis, Frank, Nat, Mila, Ric, Jul e um sem número de outra gente eram mais do que suficientes para dar sentido a todos os cantos da casa.

Na prática, dava a impressão de os objectos terem virado pessoas. Ou de terem sido as pessoas a virar objectos. Qualquer uma das explicações me contentava. Eu não tinha que mexer um dedo para tornar a casa aprazível. Sentava-me contra uma parede e observava os corpos deitados nas camas, as sombras das cabeças no soalho, as mãos nos seus movimentos pausados durante os jogos de cartas, os zunidos das conversas, os gritos e as gargalhadas. Achava que jamais conseguiria instalações tão equilibradas e originais, por mais que me esforçasse com tubos de escape, mobílias de tronco, lâmpadas, grades de leite.

Toda a gente que passava por aquela casa contribuía para dar corpo a uma série de construções que eu ia edificando, mentalmente, conforme os dias, conforme a disposição. Não precisava de corrigir o que quer que fosse. As coisas (que eram pessoas) ou as pessoas (que eram coisas) faziam-no de sua livre vontade. Num certo sentido, agiam por mim. Eram autómatos, que eu comandava a meu belo prazer.

Ia-as conhecendo pelos grupos que formavam, pelos olhares que trocavam, pelos silêncios que faziam, pelos acasalamentos com que se entretinham, pelas horas que dormiam. Ocupava boa parte do meu tempo a tentar perceber os seus pensamentos. Não tinha a certeza de atingir os objectivos que me traçara, mas não desistia. Mesmo que falhasse, nunca se provaria o desajuste entre a realidade que eu fabricava e as inconsciências de quem vagueava pela casa.

Observar os que dormiam era o que mais me aliciava. Durante o sono, ninguém tinha possibilidades de saber o que lhe passava pela própria cabeça. Deste modo, eu acabava por me deparar com um nível de dificuldade semelhante ao da pessoa que jazia imóvel na cama. Não era por me encontrar num plano exterior à sua intimidade que eu sabia menos do que ela.

Se, ao acordar, lhe perguntasse o que estivera a pensar momentos antes, enquanto dormia, o mais certo era não saber responder.

Foi nesta base que passei a assentar o meu conhecimento dos outros. A diferença entre o sono e a vigília, muitas vezes, não era assim tão significativa. Enquanto andavam de um lado para o outro e falavam, as pessoas também nem sempre tinham uma ideia exacta do que se passava dentro delas e à sua volta. Deste modo, eu tinha a oportunidade de pensar por elas, penetrando as suas mentes ocas, infiltrando-me como uma fresta de ar nas suas intimidades. No fundo, quem vivia naquela casa retratava bastante bem as massas sem destino que vagueavam pela cidade.

À medida que eu ia entrando nas almas dos fantasmas que me rodeavam ia abrindo caminho, ao mesmo tempo, para um mundo muito mais vasto, o grande cérebro informe e inútil das multidões não pensantes, que se limitavam a trabalhar, destruindo-se hora após hora, de forma irreversível e sistemática. Percebi que a minha interferência nas suas vidas podia até tornar-se decisiva porque eu só queria construir alguma coisa com os seus passos errantes, os seus espíritos sem bússola. Uma simples instalação ambulante, concebida por mim com base nos seus percursos, seria muito mais divertida e criativa do que as existências degradantes que levavam.

Além de construir as minhas novas instalações a partir dos movimentos e conversas dos vagabundos que tinha dentro de casa, havia uma quantidade de outras estruturas que eu erigia na intimidade de cada um, e que mudava conforme os dias e as horas. Assim, eu trabalhava aos mais variados níveis, envolvendo-me num processo sem limites, até porque, depois, me resumia a multiplicá-lo pelos milhões de corpos que enchiam as ruas.

Com o tempo, fui-me apercebendo de que o grau mais sofisticado e criativo de cada pessoa que me estava próxima (e que era semelhante ao de qualquer cidadão do planeta) acontecia durante o sono, quando nada tinha coerência, quando as coisas se decompunham para dar origem a outros planos e caminhos, quando a lucidez ultrapassava todas as barreiras. Era como se o céu desabasse sobre a cidade, segundo previra Andy. Um cataclismo de emoções e ideias embrenhadas em teias sem princípio nem fim. Por mais que se procurasse, por mais que se investigasse, nunca se atingia a linha do início terminal. Durante o tempo de vigília, cada um apenas dava continuidade ao que lhe acontecera durante o sono.





3



Ric era quem assumia a responsabilidade pela residência quando se tratava de prestar contas ao senhorio. Todos os fins do mês, falava com os que se dava melhor e juntava dinheiro para pagar a renda. Nessa altura, havia quem desaparecesse por vários dias, sem pretextos nem explicações. Eu contribuía com pouco, mas sabia que dar pouco sempre era melhor do que não dar coisa alguma. Tinha praticamente abandonado as traduções, sem me dar ao trabalho de telefonar ao editor a esclarecer o que quer que fosse. Ele também perdera o meu rasto. Por isso, as minhas limitações de dinheiro eram mais do que óbvias.

Se os meus laços com o passado recente já eram frágeis, acabei por apagar todos os trilhos que pudessem conduzir até à minha vida actual. A própria Cat me perdera na névoa dos meses.

Quando eu recuava mentalmente no tempo, as semanas pareciam anos e os anos pareciam séculos.

Escapei a tudo. Já nem precisava de conduzir a altas velocidades. Porque deixara de haver quem estivesse disposto a perseguir-me, quem soubesse onde me encontrar, quem quisesse saber de mim.

Até os objectos aos quais tinha maior ligação se desvaneceram nos corredores e quartos da casa onde certa noite cheguei a contar vinte pessoas distribuídas pelos recantos mais imprevistos. Fui dar mesmo com um barbudo estirado na banheira como se aquele fosse o berço mais confortável que alguma vez tivera. Deixei-me ficar a olhá-lo, de luz acesa, sem obter qualquer reacção. Podia acabar com ele em poucos segundos que não correria riscos de me atribuírem a autoria do crime, tal a abundância de potenciais assassinos que se encontravam na residência. Bastava abafar-lhe o rosto com uma almofada. Ou espetar-lhe uma faca no coração, abrindo as comportas de um riacho sangrento sobre a superfície lisa e branca da banheira que se tornaria, assim, a instalação mais radical que alguma vez eu engendrara. Ou bastava estrangulá-lo com as minhas próprias mãos, um cordel, um cinto, uma gravata. Se calhar, o repelente barbudo até me agradeceria o gesto, se recuperasse a consciência a tempo de o testemunhar antes de eu o ter consumado. Via-se que não passava de um verme estendido numa concha. Tinha um sono calmo e tranquilo. Como o de um réptil. Estava frio, conforme pude comprovar quando lhe passei a mão pelo rosto numa carícia de mãe ou de pai que se preocupa em verificar o estado do filho durante o sono. Ainda fui à cozinha, onde quatro vultos jogavam às cartas entre nuvens de fumo vulcânico, a ver se encontrava uma das facas de pão que costumava estar junto ao lava-louça. Mas no instante em que precisava dela não a encontrei. Parecia de propósito. Como se alguém, adivinhando a minha intenção, a tivesse escondido a tempo de evitar o crime. Perguntei se a tinham visto, mas ninguém se dignou responder-me.

Entrei num dos quartos, em busca de um travesseiro com volume suficiente para asfixiar o barbudo. Não tive sucesso. Desisti, só porque não tive paciência para continuar à procura de qualquer outro objecto capaz de me ajudar a concretizar a tarefa e também porque a minha atenção depressa se dispersou...

Estavam a chamar-me. Quem poderia ser? Se ninguém me ligara na cozinha quando perguntara pela faca de pão, quem estaria agora a proferir o meu nome? Algum sonâmbulo?

Saí da casa de banho, deixando o barbudo enterrado na serena turbulência dos sonhos e fui ver o que se passava.

Estou aqui  exclamou uma voz entorpecida de mulher, que não identifiquei, de início. Avancei no escuro do quarto de onde me pareciam vir as palavras e percebi que se tratava de Nat.

Estou com medo  continuou ela.  Deitas-te aqui comigo? É só até adormecer.

Fiz-lhe a vontade. Nat era boa rapariga. Tinha os cabelos longos, escuros e lisos sobre o colchão. Fi-la chegar para o meio da cama, obrigando-a a empurrar os dois corpos que dormiam do outro lado, deitei-me e pus-lhe o braço esquerdo sob o pescoço. Ela encostou-se a mim, reclinando a cabeça no meu ombro.

Descansa  disse eu.  Dorme..., ninguém te fará mal.

Enquanto proferia estas palavras, em tom sibilante, notei que ela se afundava numa descontração progressiva, vergando a alma ao destino dos justos.





4



A meio da noite, acordei em sobressalto. À minha direita, na cama, encontrava-se o barbudo, o mesmo que eu pretendera matar quando dera com ele a dormir na banheira.

O energúmeno desatara a beijar-me enquanto dormia, ao mesmo tempo que metia a mão entre as minhas pernas. A sua barba cheirava a fumo e dejectos. Nat continuava deitada à minha esquerda, dormindo com a cabeça voltada para o lado oposto àquele em que eu me encontrava.

Empurrei o barbudo para fora do colchão, mas ele não desistiu. Mesmo no soalho, estendia as mãos e agarrava-me com uma força superior a todas as minhas capacidades de defesa.

Dei-lhe socos e pontapés, levando-o a abrir os olhos para a realidade. Tive um calafrio de medo, mas depressa percebi que o patife não tinha consciência da forma como eu acabara de o agredir.

Amo-te!  dizia ele, babando-se e tentando voltar para cima do colchão, enquanto eu fingia dormir.  Não reparas nos meus sentimentos, não me dás atenção, fazes de conta que não existo.

Conseguiu deitar-se de novo a meu lado, abraçando-me, ofegando, encostando a sua cara à minha. Virei-lhe as costas e tentei afastá-lo com sacudidelas de rins.

Só depois me dei conta de que, em vez de me ver livre dele, lhe facilitara a tarefa porque lhe permiti que me prendesse pela cintura e desatasse em movimentos lúbricos contra as minhas nádegas.

Quero comer-te!  repetia ele, de forma obsessiva.  Quero...  engolindo sílabas, enrolando a língua de prazer, salivando como uma besta.

Quanto mais me tentava libertar, maior era a sua força de braços. Tentei acordar Nat, para que me socorresse, mas ela não reagia. Parecia morta, tal como os outros dois corpos estendidos do seu lado esquerdo. Para aquela gente, dormir era morrer, esquecer, desaparecer na distância que devorava tudo e todos.

A dado momento, consegui desfechar uma cotovelada contra os queixos do barbudo, que soltou um grito de dor e se viu obrigado a soltar-me.

Não te excites tanto! ­ exclamou.  Dás cabo de mim.

Aproveitei para me virar de barriga para cima, mas ele não perdeu tempo e sentou-se sobre o meu peito, pondo-se a desabotoar a braguilha de forma rápida e precipitada.

Faz-lhe festas...  dizia, completamente fora de si, sem consciência de que o seu peso me esmagava ao ponto de quase me cortar a respiração.

Só tive tempo de cuspir. Cuspi uma, duas, três vezes, chamei-lhe nomes. Vi Fred na minha frente!, ainda que este nada se assemelhasse ao energúmeno que se me sentara em cima. Odiei o barbudo tanto como odiara Fred. Tinha que encontrar forças para não me deixar vencer.

Quando o barbudo me segurou a cabeça com as mãos, agarrando-me pelos cabelos e puxando-me o rosto na direcção do seu órgão erecto, numa altura em que aligeirou o peso sobre mim, esquivei-me por entre as suas pernas, voltei-me e caí sobre ele com a ferocidade de um animal selvagem. Arranhei-lhe as costas, esmurrei-o, esgatanhei-o, dei-lhe dentadas, puxei-lhe a barba, torci-lhe o pescoço. Acabei por fazê-lo desabar de barriga para baixo sobre o colchão. Naquele preciso instante, vi o tubo de escape que estava mesmo ali ao lado da cama e achei que tinha valido a pena transportá-lo de casa em casa durante todo aquele tempo só para me valer em semelhante aflição. Agarrei-o com todas as minhas forças e desferi-lhe golpes atrás de golpes. Sem pensar, sem hesitar, sem vacilar um segundo. O seu corpo foi cedendo, amolecendo, vergando.

Saí da cama, acendi a luz para ver o que se passava e verifiquei que o tubo de escape executara com perfeição o seu ataque sobre a cabeça do barbudo, golpeando-a, amolgando-a, rasgando-lhe o couro cabeludo até aos miolos. Havia sangue nos lençóis encardidos. O monstro jazia, imóvel.





5



Não me preocupei em saber se o barbudo estava vivo ou morto. A diferença seria pouca ou nenhuma. Ferido estava com certeza. De qualquer maneira, durante os próximos dois ou três dias, ninguém se preocuparia com o seu estado. Quem o visse não teria dúvidas de que estava afundado no sono. As manchas de sangue confundir-se-iam com as nódoas de sujidade que eram habituais nos lençóis de quem vivia na casa.

Àquela hora da manhã, só se ouvia os jogadores de cartas batendo com os nós dos dedos no tampo da mesa da cozinha, entre alguns comentários de ameaça ou desalento. Ninguém se terá apercebido da luta travada no quarto de dormir. Se alguma coisa se ouviu, o mais provável era concluírem que tudo não passara de uma refrega amorosa, o que não era tão incomum como isso na residência que ocupávamos.

Não fora por acaso que eu premeditara assassinar o barbudo quando o vira estendido na banheira. Era corpulento, bonacheirão, pacífico e simpático. Eu nem sabia o seu nome, mas por diversas vezes reparara que tinha o hábito de me fuzilar com os olhos sempre que dava comigo na cozinha, à saída de algum quarto ou da casa de banho. Todavia, nunca se atrevera a dirigir-me a palavra. Devia ser tímido. Até porque só me atacara a dormir. Provavelmente, enquanto eu passava pelas brasas junto de Nat, viera deitar-se a meu lado e caíra no sono, feliz por me ter perto de si. Depois, num impulso sonâmbulo, pusera-se a beijar-me, dando origem a um combate que não estaria nos seus intentos.

Fui dar uma volta pela casa, para desanuviar. Passei pela cozinha, onde me demorei alguns minutos a observar o jogo de cartas, entrei na casa de banho, sentei-me na sanita, tentei organizar ideias. O cérebro, porém, não respondia. Observava o lavabo, a banheira onde momentos antes o barbudo dormia estendido, as toalhas encarquilhadas nos dependuradores, o cesto de roupa suja, os sabonetes com restos de cabelos, as pastas e escovas de dentes ao abandono.

Ergui-me ligeiramente na sanita e vi a minha cara reflectida no espelho besuntado por marcas de dedos. Não me reconheci. Eu era outra pessoa. Tinha o rosto mais vincado do que o costume, olheiras, a expressão pálida de quem não se sente feliz nem o seu contrário. Tinha chegado a um ponto em que nada me dizia respeito. Não reagia, a não ser que se metessem comigo. E, mesmo assim, quando respondia era como se houvesse uma segunda alma dentro de mim. Uma alma desligada da minha história, do meu percurso, da minha vontade.

As instalações que eu passara a construir e conceber de acordo com os movimentos de quem vagueava pela casa haviam-se tornado no meu novo universo.

O que me distinguia dos outros era o estado de quase permanente vigília. Se dormia, era pouco. Não mais de uns breves minutos, para descansar a cabeça. E até nesses curtos instantes o meu espírito estava sempre alerta, imaginando estruturas, não já de objectos, que eu acabara por rejeitar de todo, mas de gente que se pretendia viva e que eu chegara a considerar sob o meu domínio.

De uma certa forma, eu desejava que o barbudo tivesse sucumbido aos meus golpes, dando-me oportunidade de vê-lo morto, transformado em coisa, mas sabendo, ao mesmo tempo, que um dia fora pessoa.

Era uma experiência nova para mim. Replicara de forma desmesurada ao seu ataque por me sentir protagonista de uma instalação viva, que ninguém controlava a partir do momento em que eu me integrara nela.

Antes, eu concebia, imaginava, executava, planeava, corrigia, mirava do exterior. Agora, estava do outro lado. Do lado dos objectos, do lado dos corpos (em movimento ou desfalecidos), das forças que os comandavam, decidiam por eles, orientavam, manipulavam. Não conhecia essas forças, mas tinha noção da sua existência. E sabia que eu também estava nas suas mãos. O meu poder esvaíra-se. Como tal, reforçara-se.

Voltei para a cama. Estendi-me entre Nat e o barbudo, que se encontrava na mesma posição em que eu o deixara, depois de o abater com o tubo de escape.

Encostei-me a Nat, de mansinho. À minha direita, o barbudo parecia um elefante de pedra. Passei-lhe a mão pela face. Estava gelada. Deixei-me estar de olhos no tecto, fitando os primeiros raios da claridade matinal que se infiltrava pela janela do quarto. Nat aconchegou-se ao meu calor, que ia aumentando, à medida que o do barbudo se extinguia.





6



No dia seguinte, ninguém deu pela falta do homem que me atacara durante a noite e que continuava estendido na cama como se nada lhe tivesse acontecido. Nat levantou-se antes de mim e olhou-o, mas não passou disso. Deve ter estranhado mais o número de pessoas com quem tinha dormido do que propriamente o lastimável estado em que se encontrava o barbudo.

Saí da cama logo a seguir a ela. Fui até junto da porta da casa de banho perguntar-lhe se desejava café, uma amabilidade que não me era habitual. Respondeu que sim, de uma forma sonoramente arrastada, levando-me a concluir que estava a lavar os dentes.

Apeteceu-me entrar, para lhe ver a cara, para me certificar de que realmente não se apercebera do que eu fizera ao barbudo. Mas não me atrevi. Quanto mais natural fosse, menos daria nas vistas.

Eram onze horas da manhã. A casa estava mergulhada em silêncio. Toda a gente dormia, ou já tinha saído. Eu não sentia qualquer preocupação pelo que acontecera na noite anterior. Restava-me assistir ao curso dos acontecimentos, dos quais fazia parte e cuja evolução não dependia de mim. Tinha a certeza de que desapareceria no momento oportuno. Mais tarde ou mais cedo, escaparia, sumiria, daria o fora. Só não sabia para onde. A minha vida não acabaria ali, entre destroços apodrecidos.

Pelos meus cálculos, teria ainda um dia ou dois, em segurança. Um, pelo menos.

Servi o café a Nat, que se deixou cair estremunhada sobre uma das cadeiras. Estava pálida, absorta, descontraída.

Sentes-te bem?  perguntei.

Ela respondeu afirmativamente com a cabeça, sem me olhar. Nisto, entrou Don. Murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido, pegou-lhe na mão e levou-a para um dos quartos, dando-lhe tempo apenas de se voltar e dizer, através de um fugaz sinal de olhos, que gostaria de falar comigo.

Ouvi gemer durante toda a tarde. Um gemido rouco e abafado, que tanto podia ser de homem como de mulher. De vez em quando, Don soltava uns gritos, que se sobrepunham aos gemidos, voltando estes a seguir, em cadência irregular, mas persistente.

Não tive coragem de ir ver o que se passava. Os gemidos podiam ser de Nat, de Don, ou de qualquer outro. Mas também podiam ser do barbudo, embora me parecesse pouco provável que ainda estivesse vivo.

Ao fim da tarde, Bill entrou, acompanhado de Ric. Nenhum deles pareceu ligar ao ruído de fundo que ia enchendo a casa, hora após hora, como uma música que entrava no ouvido sem descolar.

Perguntaram-me se queria jogar às cartas. Respondi-lhes que não estava com disposição. Puseram-se os dois a treinar formas habilidosas de misturar os baralhos. Depois, Bill ensinou a Ric alguns truques.

Às nove da noite, voltei para a cama, onde o barbudo continuava exactamente na posição em que eu o deixara de manhã. Os outros dois, que haviam passado a noite do lado esquerdo de Nat, dormiam, ainda, ouvindo-se as suas respirações pesadas e lentas.

Deitei-me ao pé do barbudo, abracei-o e pus-lhe uma das pernas por cima, como se para dar a entender que tudo decorria bem entre nós. Estava duro e frio como um tronco de árvore.

Algum tempo depois, Nat veio estirar-se junto de mim. Entrelaçou a sua mão na minha e obrigou-me a dar-lhe atenção.

Não sei se adormeci, ou se realmente vi o que se passou, mas a certa altura um dos corpos que estava ao lado de Nat passou a mão pelos seus cabelos, agarrou-a, puxou-a para si e desatou a abrir-lhe a camisa.

Fiquei sem reacção. Nat tinha-me sido roubada num ápice, sem oferecer resistência. Ouvi-a sussurrar:

Dave..., Dave...  e deixar-se ir.

As pernas de um e de outro tocavam-me, por vezes, fazendo-me estremecer. Eu ouvia o batimento dos seus corações. Nat chegou a dar-me a mão enquanto se contorcia sob o corpo de Dave. Dava-me a mão e apertava-me como se precisasse de mim para a salvar. Cravava as suas unhas nos meus pulsos e dizia:  Vem, vem...  deixando-me na dúvida sobre se falava com Dave ou comigo.

Apeteceu-me reavê-la, reapoderar-me da sua mão, mas Nat foi ainda entregar-se ao colega de Dave, que estava na outra ponta da cama.

Quando se desfez dele, receei que o barbudo também constasse dos seus planos. Mas Nat estava exausta. Mesmo assim, logo que recuperou as forças, levantou-se, saiu do quarto e foi entregar-se noutros braços.





7



Passei a noite em claro. Por mais do que uma vez, tive a impressão de que o barbudo respirava a meu lado. Cheguei mesmo a notar que uma das pontas do lençol desprendido vibrava sob o efeito do ar ténue que lhe saía das narinas. Não fiz o que quer que fosse para verificar o seu estado. Mantive-me ao comprido na cama durante as horas infindas em que a escuridão arrastou o peso das suas grilhetas pela casa.

Eu queria partir de cabeça levantada, pela manhã. Se fugisse durante a noite, levantaria suspeitas.

Logo que a claridade surgisse e os primeiros ruídos de passos ecoassem pelas divisões da residência, eu levantar-me-ia, com ar natural, daria uma volta pelos quartos a fim de olhar pela última vez a minha instalação de farrapos humanos e sairia porta fora, sem dar nas vistas, como quem vai à esquina comprar o jornal. Deixaria atrás toda a minha roupa, as grades de leite, as lâmpadas, o banco de jardim, a mobília de troncos, o tubo de escape. Desapareceria como um fumo que se esvai.

Calculei tudo ao pormenor. Nada poderia falhar. Nem um tom de voz, ou um movimento de dedo.

Vivia dentro de uma estrutura fechada construída por mim, dentro de uma teia sem brechas onde nem o ar entrava, mas nunca deixei de imaginar que haveria uma saída para a superfície mais espessa. Uma saída simples como a brisa insignificante que se deixa confundir com o raio de luz rente ao qual a cortina da janela ondula. Avançaria como uma fera sobre cacos de vidro, sobre estilhaços, sobre restos de alma.

O carro, que eu não utilizava há várias semanas, seria o instrumento a que eu recorreria para escapar, mais uma vez. Já nem tinha a certeza de saber conduzir. Não me lembrava do sítio da ignição, nem da posição dos pedais. Só a chave estava garantidamente comigo. Nada de velocidades, nada de provocações, nada de riscos.

Seguiria pela auto-estrada, pé ante pé, quilómetro atrás de quilómetro, curva após curva, até me perder nas brumas do horizonte onde as cidades tombavam contra os céus, multiplicando-se em túmulos que se reerguiam sobre ossos e cinza.

Às sete da manhã, não resisti e saí da cama. Fiz mais barulho do que era costume, a fim de que não restassem dúvidas sobre os meus passos dentro de casa.

Ninguém me seguiu o exemplo. Nat estava nua, enrolada em Sus. Parecia uma serpente. Ric dormia no meu banco de jardim, com ar de mendigo entrincheirado na manhã fria. Não liguei aos outros. Nem ao labirinto onde os seus nomes se desencontravam.

Abri a porta da rua. Detive-me por alguns momentos, a ver se alguém me vinha no encalço, pressentindo, num último instante, o meu destino imediato.

Mas a instalação não acabava ali. Havia ainda a estrada, o longo caminho até ao outro lado, onde os prédios rangiam nas estruturas, à beira de ceder.

A cidade balouçava ao vento quando os meus olhos esvoaçaram sobre a neblina matinal que me guiaria os passos. Atravessei a rua e caminhei ao longo de dois quarteirões até chegar ao sítio onde me recordava de ter estacionado o automóvel num fim de tarde do mês anterior.

Lá estava ele. Entrei e arranquei, com o maior dos vagares, por entre os veículos que corriam estremunhados através da sombra compacta dos edifícios.

Atravessei a ponte e continuei em frente, ultrapassando placas atrás de placas, que apontavam direcções, nomes de lugares, caminhos alternativos.

Manter-me-ia ao volante durante horas e dias, sem sair da rota em que entrara, até que a névoa da minha última instalação deixasse de me perseguir, agarrada ao pára-choques do veículo como um cadáver que se ia desfazendo sobre o asfalto.

Sempre que me detinha com o fim de encher o depósito de combustível, aproveitava para verificar o estado dos filamentos que se me haviam dependurado no carro e que o alcatrão se encarregava de decepar com persistência e método.



Dias depois, a estrada ondulava à minha frente por dentro de uma claridade vaga que me fazia perder a noção das distâncias. O carro mantinha uma velocidade tão estável que a certa altura parecia ter parado no tempo.

Senti uma pressão nos ouvidos e um ligeiro zunido que me acompanhava na viagem sem solavancos ao longo de quilómetros sem fim.

Certa manhã, deparei-me com uma invasão de insectos que esvoaçavam endoidecidos dentro do automóvel, colando-se-me à pele e à roupa suada.

Insectos era o sinal que eu esperava. O sinal que desconhecia, mas que esperava, pacientemente, desde que abandonara a casa onde dormira ao lado de cadáveres tão cadáveres que até respiravam.

Os insectos queriam dizer que chegara a hora de mudar de rumo, que o perigo já não era tão ameaçador, que eu devia tomar outra direcção e procurar guarida, algures.

Não tive a certeza de perceber bem o que se passava, mas continuei. Sem me preocupar com as instruções da placa que apontava a saída, abrandei, guinei para a direita, fiz-me à curva, parei no semáforo vermelho, esperei, arranquei no verde, sempre com os insectos zunindo ferozmente à minha volta.

Prossegui por uma artéria secundária. Ao fim de pouco mais de um quilómetro, encontrei ligação a um caminho de terra. O destino metia-se-me pelos olhos dentro. Segui-o sem hesitar. Acelerei. Desapareci sob um rasto de poeira.



FIM