Capítulo I
1
Só
depois de ter pago o primeiro mês de renda ao senhorio e de este se
ter despedido de forma seca e breve é que me dediquei a ver o novo
apartamento com atenção. Se houvesse alguma coisa realmente
desagradável com a casa que acabara de alugar eu já não teria
hipóteses de recuperar o meu dinheiro. E como não tinha
disponibilidade financeira imediata para arrendar outra, teria que
viver ali pelo menos durante um mês.
Foi
com espírito construtivo, por isso, que me pus a olhar para o que me
rodeava. A sala de estar, que também servia de hall de
entrada, era ampla, alcatifada de azul e as paredes estavam
impecáveis. Depois, havia uma passagem para um quarto de dormir com
duas janelas que, por sua vez, ligava a outro só com uma abertura
para o exterior. A casa não tinha portas a separar as divisões. À
esquerda da sala de estar ficava a cozinha. Já não me recordo onde
se situava exactamente a casa de banho, mas, segundo a lógica, só
podia ser por baixo da escada comum que conduzia ao andar de cima,
mesmo ao lado da pequena cozinha.
Era
assim o primeiro apartamento que aluguei. Móveis não havia e eu
também não os possuía. No carro que estacionara três andares
abaixo, tinha um colchão, dois pares de lençóis, um ou dois
cobertores, meia-dúzia de pratos e talheres trazidos de
restaurantes, para além da minha roupa pessoal.
Da
zona onde alugara o apartamento, não sabia se era boa ou má. Nem me
preocupara em apurar. Acabara de chegar à cidade, sem qualquer noção
sobre o Norte, o Sul e o resto.
Combinara
encontrar-me com o senhorio no local que ele me indicara e chegara
lá, às apalpadelas. Nos semáforos, aproveitara para ir perguntando
às pessoas que atravessavam as passadeiras onde ficava a rua tal e
depois fora-me safando com manobras por entre as centenas de carros
que surgiam das transversais como se para me abalroar.
A
dada altura, furiosa com uma das minhas demoras em arrancar num
semáforo verde, uma mulher taxista atarracada saiu de dentro da sua
viatura e veio com gestos ameaçadores na minha direcção. Para
mostrar que não a temia, saí também do carro e mandei-a para a
outra banda. A taxista não esteve com meias medidas. Ofendida pelas
minhas palavras, deu meia volta, entrou no táxi e voltou a sair,
armada com uma barra de ferro, desatando a correr para mim com a mão
bem erguida ao alto. Não perdi tempo a pensar. Meti-me no carro e
acelerei a toda a força sob o buzinão de uma fila de veículos que
se tinha formado atrás do táxi. Só segundos depois me dei conta de
que a precipitação em escapar à taxista me fizera passar o
semáforo vermelho, provocando travagens forçadas numa quantidade de
veículos que atravessavam a grande velocidade na minha frente. Nem
me atrevi a olhar para trás, a ver se tinha causado algum acidente.
Acelerei sempre.
Dois
ou três quarteirões adiante tive consciência do que acabara de
fazer. Senti um constrangimento no peito, mas continuei. Tinha
escapado mais uma vez. Até àquele momento, escapara sempre.
Habituara-me a medir o risco das situações, abrindo caminho a
qualquer preço. Faltava-me saber o que seria de mim na próxima
ocasião em que o perigo se atravessasse à minha frente sem piedade.
2
Meia
hora depois de ter alugado o apartamento, já tinha esvaziado o carro
e disposto as minhas coisas nos lugares certos. Só o colchão, que
pusera no quarto de dormir principal, não me parecia estar no sítio
mais indicado. Coloquei-o junto a uma das janelas, mas pareceu-me
demasiado exposto à claridade e aos olhares da vizinhança. As
cortinas acabavam por fazer falta. Só que eu não tolerava cortinas.
Provocavam-me asfixia, deixavam-me sem visibilidade para o exterior,
eram uma espécie de prisão.
Pus
o colchão no meio do quarto e depressa concluí que naquela posição
eu ficaria com os movimentos prejudicados.
Experimentei
colocá-lo entre as duas janelas e dei-me conta de que a exposição
à luz e à curiosidade da vizinhança ainda seria maior do que na
primeira posição.
Tinha
já tomado a decisão de o levar para o quarto contíguo, que era
mais pequeno e só com uma janela, quando descobri o lugar que me
parecia perfeito: encostado à parede interior, que separava o quarto
principal da sala de estar.
Contente
pela solução encontrada, estendi-me na cama e respirei fundo. Podia
parecer uma questão insignificante, mas a posição de uma cama
tinha a ver com a forma de cada um estar na vida durante oito horas
por dia. Não se podia menosprezar a existência durante tão longos
períodos de tempo. Ainda por cima quando se sabia que o sono era
fundamental para retemperar forças.
Pus-me
a divagar, enquanto olhava as paredes nuas do quarto em que acabara
de me instalar e, de repente, lembrei-me que um colchão encostado à
parede limitaria os movimentos de duas pessoas. Uma delas, ao abrir
as pernas, ou os braços, podia até acabar por se magoar. A que
ficasse do lado de dentro da cama nem teria garantida a segurança da
cabeça na hipótese de ser vítima de sono agitado.
Levantei-me
e reexaminei a situação. Para evitar o trabalho de arrastar o
colchão para um lado e para o outro, sem estratégia pré-definida,
coloquei-me à entrada do quarto e estudei todas as posições
teóricas possíveis de colocar uma cama de pessoa só num quarto
amplo, com duas janelas para o exterior e duas passagens para outros
quartos.
Uma
das soluções que me agradava era colocar o colchão junto ao tecto
durante o dia, de forma a deixar todo o espaço livre, e baixá-lo à
noite para dormir. Mas isso implicaria a construção de um complexo
mecanismo de cordas e roldanas que ultrapassava a minha disposição
na altura. Tudo o que obrigasse a trabalhos que eu não pudesse
realizar naquele preciso instante estava excluído da minha agenda.
Por isso, não tive outro remédio senão devolver o colchão a uma
das posições anteriormente rejeitadas – entre as duas janelas.
Era o desenlace mais óbvio. Expor-me-ia aos olhares da vizinhança,
mas nem por isso deixaria de fazer o que muito bem me apetecesse. Até
porque eu tinha o costume de andar sem roupa dentro de casa e, mais
tarde ou mais cedo, as pessoas dos prédios contíguos
aperceber-se-iam disso.
3
Voltei
a deitar-me e fiz mentalmente contas ao dinheiro que me restava.
Talvez nem desse para ingerir uma sopa numa das tascas das
redondezas. Mas comer era o menos. O importante era conhecer pessoas.
Mais dia menos dia, havia de fazer algumas amizades. Alguém que
encontrasse na rua, um homem que me pedisse uma informação sobre um
sítio qualquer, uma mulher que tivesse acabado de chegar à cidade
como eu, um jovem mais conversador que podia apresentar-me a um primo
ou vizinho...
Depois,
havia de telefonar a quem tivesse mais a ver comigo e convidá-lo-ia
a aparecer no meu novo apartamento. Essa pessoa traria companhia e
alguma coisa para comer. Faríamos uma festa e a noite passaria
depressa.
A
casa que eu alugara estava completamente desprovida de mobília, mas
isso era menos importante do que o prazer que o convívio havia de
proporcionar. Ninguém levaria a mal o meu desapego pelo conforto
banal do dia a dia. Além de que uma casa vazia era bem mais
aliciante do que uma casa cheia, porque dava a liberdade a quem nela
residia de fruir o espaço como melhor entendesse. Uma casa vazia
tornava possível sonhar com os objectos de que poderia vir a ser
recheada no futuro, ao passo que uma casa cheia não deixava lugar a
mais nada. Quando apetecesse adquirir um móvel novo, seria
necessário prescindir de um velho, o que acabaria por constituir um
desgosto para quem se afeiçoava às coisas. Perder um móvel ou um
objecto qualquer, mesmo que sem utilidade, poderia magoar tanto como
perder uma pessoa. Colocando-nos no lugar do objecto rejeitado, era
como se deixássemos de fazer sentido, como se ninguém gostasse de
nós, como se passássemos na rua e não se desse pela nossa
presença. Depois de se viver durante anos em contacto próximo com
determinadas coisas, acabava-se por depender delas como de um fio que
nos liga à vida.
Por
isso, a melhor forma de eu sobreviver, parecia-me, era nunca ter
nada, para não me afeiçoar às coisas. Ou ter quase nada, para me
afeiçoar a pouco. E esse pouco tinha que ser sempre algo que eu
pudesse transportar sem esforço para todo o lado. Procedendo desta
maneira, nunca ficaria dependente de nada, nem jamais sentiria falta
do que quer que fosse. Não poderia haver melhor – nem maior –
liberdade.
Os
móveis de uma casa eram objectos insignificantes, corriqueiros, que
podiam ser substituídos com facilidade, e fazia-me impressão que
alguém – incluindo eu – pudesse ficar ligado a eles pela
sensibilidade, pelo afecto, pelo sentido de posse. Esse tipo de
ligação ao irrisório inquietava-me, desassossegava-me,
assustava-me. No fundo, os afectos perturbavam-me. Por mais que o
tentasse desmentir, via o amor como uma ameaça. O que fazia com que
as minhas relações fossem esquivas, quer as estabelecesse com
pessoas ou coisas. Na prática, abandonava umas e outras com
facilidade.
Os
objectos tinham memória, tinham alguma coisa a ver com quem os
fabricava ou simplesmente utilizava, mas eu não pretendia fazer
deles elementos fundamentais do meu dia a dia. A mobília de uma casa
era absolutamente dispensável. Se aceitava conviver com pessoas era
por recear que a solidão me conduzisse à loucura. E se procedia
dessa forma era porque sabia que, a qualquer momento, me afastaria de
quem quer que fosse, desapareceria, partiria para outra, sem remorsos
nem explicações, num claro desafio ao que me esperava. Para
recomeçar tudo, indiferente ao que deixara para trás. Fazia novas
amizades ou recuperava antigas. Nunca alimentava as mesmas por um
longo período de tempo. Comigo, tinha que haver sempre cortes,
rupturas, afastamento. Assim, ia controlando os afectos, em vez de me
deixar dominar por eles.
Enquanto
estava num lugar, porém, eu procurava sempre fazer com que os amigos
se sentissem à vontade na minha companhia. Esse era um dos segredos.
Queria-os perto de mim, embora nunca estivesse perto deles. Às
vezes, nem os ouvia. E desatava a rir para que não percebessem que
eu pensava noutras coisas enquanto falavam. Num espaço vazio, podiam
sentar-se ou deitar-se no chão, vaguear pelos quartos, utilizar a
cozinha ou a casa de banho conforme lhes apetecesse, sem qualquer
tipo de inibição. O meu desejo era que fossem iguais a eles
próprios, não utilizando o recheio da casa para se esconderem ou
mascararem. Numa casa vazia, as suas palavras, risos, comentários,
ideias, teriam mais eco e dariam a conhecer melhor a alma de cada um.
4
Vivi
com falta de dinheiro durante bastante tempo. Não era capaz de
amealhar duas moedas. Gastava tudo o que tinha em poucas horas ou
dias. Quando não aparecia ninguém com quem partilhar a miséria, e
se me apetecia comer alguma coisa, descia à rua, entrava numa das
cervejarias da zona e dirigia-me à casa de banho. Por entre a
confusão da clientela que se aglomerava junto ao balcão, era fácil
surripiar de passagem uma sandes, um rissol, um ovo cozido. Havia
dias em que tinha sorte a dobrar – surripiava quando entrava na
casa de banho e surripiava quando saía!
Certa
vez, ao terminar um dos meus almoços rápidos num dos
estabelecimentos que mais frequentava, parei no quiosque de jornais
habitual e pedi um para consultar a secção de empregos. A velhota
já conhecia a minha situação de penúria, por isso, concedia-me
aquela facilidade.
Um
dos sonhos que eu alimentava desde há muito tempo era o de ser
guarda florestal numa ilha deserta. Mas achava que ainda era cedo
para o fazer. Não era fácil viver em completo isolamento. Acabei
por abandonar a ideia, com a certeza de que os anos me esclareceriam.
Havia
muito por onde escolher. Eu não me importava de servir à mesa num
restaurante, fazer traduções, desempenhar tarefas num escritório.
E sentia que, antes do fim do mês, teria emprego garantido, a fim de
poder pagar a minha nova renda.
Embora
uma coisa nada tivesse a ver com a outra, eu descortinava uma forte
relação entre a facilidade que tivera em descobrir apartamento e a
facilidade que teria em arranjar emprego. O normal seria alugar
apartamento só depois de ter uma actividade profissional definida,
mas eu considerava que se alugasse apartamento primeiro, depois me
seria mais fácil conseguir emprego. Se procurasse emprego antes do
apartamento, corria o risco de desistir das duas coisas – do
emprego por cansaço de o procurar e do apartamento por não ter
emprego que me permitisse ganhar dinheiro para pagar a renda.
Estava
diante do quiosque com o jornal aberto na minha frente a consultar as
dezenas de anúncios, quando notei que havia alguém a dois ou três
metros de distância que me fixava com insistência. Fingi não ver o
que se passava, dei dois passos atrás na direcção da parede, olhei
para o outro lado, mas nada. Sempre que baixava os olhos para o
jornal, reparava que um homem não tirava os olhos de mim. Cheguei
mesmo a corar, só de pensar quem seria, o que desejaria aquele
indivíduo, o que estaria por dentro do seu olhar fulminante, o que
me aconteceria se tivesse alguma obscura intenção. Ter-me-ia visto
sair da cervejaria sem pagar?...
Voltei
ao quiosque para devolver o jornal à velhota e quando me preparava
para ir embora, senti um toque no ombro: Olha quem aqui está!
Durante
uns milésimos de segundo hesitei entre fugir ou encarar o homem. A
segunda hipótese venceu, embora a custo.
Já
não te lembras de mim? perguntava o intruso, olhando-me de forma
intensa, à espera que eu descobrisse o seu verdadeiro rosto por trás
das sombras da idade.
Ao
notar a minha perplexidade, ele não foi capaz de se conter: Sou
o Ralph! E perante o meu olhar vítreo e confuso, continuou:
O Ralph! Ralph Pike! Andámos juntos na escola...
Por
mais que eu o fixasse, não conseguia descobrir as suas feições
antigas. A pessoa que me enfrentava tinha óculos e bigode, o que
devia alterar radicalmente a sua expressão de infância. Por isso,
as minhas contas mentais não batiam certas.
A
frase – “andámos juntos na escola...” – ecoou-me aos ouvidos
duas e três vezes, sem que eu fosse capaz de identificar a pessoa
que tinha à minha frente. O meu bloqueio era total.
A
certa altura, por breves segundos, tive uma vaga ideia acerca de quem
se tratava, mas o facto de não conseguir asssociar o seu rosto
actual ao antigo ainda me confundiu mais. E a ideia vaga
desvaneceu-se de todo.
Primo
da Debby?... perguntei, com medo de falhar, embora sabendo que
não tinha nenhuma hipótese de acertar.
Debby?
Quem é a Debby? retorquiu ele, com ar de quem acabara de chegar
de outro planeta.
Não
sabendo como proceder numa situação daquelas, e receando provocar
algum equívoco de conseqüências imprevistas, disse-lhe que estava
com pressa e que para a próxima falaríamos melhor, enquanto me ia
afastando, de costas, para dar ideia do meu interesse em continuar a
falar com ele e que se não o fazia naquele momento era porque as
obrigações me levavam a não poder ficar por mais tempo. Na
despedida, por entre encontrões e pedidos de desculpa de pessoas que
passavam em todas as direcções, ele fez um derradeiro esforço e
estendeu-me um cartão, com a sua morada e telefones. Num último
relance, tive ainda oportunidade de o ver levantar um braço e dizer
qualquer coisa que se perdeu por entre a confusão da tarde azul, mas
nada me faria voltar atrás. Da próxima vez que o visse, aquele
braço no ar já estaria esquecido.
5
Passados
vários dias, telefonei a Ralph. Fi-lo com a secreta esperança de
que ele, o pai ou algum tio soubessem de um emprego para mim. Nunca
lho pediria directamente, mas o assunto podia sempre surgir no meio
de duas conversas.
Ralph
chegou ao meu apartamento por volta das onze da manhã, acompanhado
por uma jovem que não parecia manifestar interesse por nada do que
se passava à sua volta. Nem por mim, nem pelo apartamento, nem pelo
próprio Ralph. Dava a ideia de ter vindo por obrigação. Mais
tarde, soube que se tratava de uma prima que estava de passagem em
casa dos pais e que ele trouxera para dar uma volta pela cidade.
Enquanto
Ralph e eu trocávamos as primeiras impressões, ela encostava-se à
parede de pernas cruzadas, procurava uma posição para os braços,
suspirava e ajeitava o cabelo curto castanho aos caracóis sem nunca
emitir palavra.
A
primeira coisa que Ralph disse quando entrou foi: Daqui a bocado
vamos almoçar aí a um sítio que conheço... parecendo querer
deixar claro com a sua intenção que não pretendia ir-se embora tão
cedo. Se calhar, dali a uma ou duas horas, não voltaria a falar no
almoço, mas afirmara-o logo de entrada para marcar um estilo.
Ralph
era basicamente estilo. Apenas isso. O resto não contava. Porque não
era sólido. Tanto podia ser uma coisa como outra. Durante uma
conversa, o meu antigo colega tomava todas as posições possíveis.
Fazia-o, precisamente, para marcar um estilo. Deste modo, como eu
viria a comprovar mais tarde, ele acabava por agradar a todos, ao
mesmo tempo, gregos e troianos, velhos e novos, mulheres e homens.
Quando
Ralph falou em almoçar fora, senti um enorme embaraço porque teria
que lhe colocar o meu problema de falta de dinheiro, pedindo-lhe que
me pagasse a refeição. Mas reconheço que o que mais me constrangia
era ter que abordar o assunto diante da prima.
Quando
tencionas mudar-te para cá? perguntou Ralph, olhando a casa
vazia e concluindo, precipitadamente, que eu ainda não me instalara.
Respondi-lhe
que já vivia na casa, que estava perfeitamente a meu gosto. O que
estava à vista era tudo o que desejava e tudo o que possuía.
Não
gosto de casas com móveis até ao tecto expliquei, enquanto
reparava na expressão da prima que, pela primeira vez, dava a ideia
de prestar atenção à conversa.
Ralph
desatou a rir com a minha resposta e disse que conhecia uma loja com
móveis jeitosos e baratos.
Fiz
de conta que não percebera a insinuação e, logo a seguir, ele
pôs-se a andar pela casa, com ar de quem pretendia espiolhar todos
os recantos.
Se
quiseres um parceiro, não me importo de dividir o apartamento
contigo acrescentou, antes que eu tivesse tempo de adivinhar o
que lhe ia na cabeça.
Respondi-lhe
de forma evasiva, por não ter a certeza de a proposta me interessar.
Apesar de a sua forma de estar não me incomodar, sentia que ainda
era cedo.
Para
descongestionar o ambiente, perguntei se queriam café. Decidimos
tomá-lo fora.
À
saída do prédio, entrámos no carro de Ralph, que arrancou e nunca
mais parou, nem para tomar café, nem para almoçar. Passámos a
tarde às voltas pela cidade, com a prima sempre muda no assento de
trás (embora sem nunca dar ares de aborrecimento), enquanto o meu
antigo colega me ia mostrando ruas, edifícios históricos, praças,
avenidas, centros comerciais, estádios de futebol, discotecas,
cinemas...
6
Depois
de estar com Ralph e com a prima, passei a sentir que o meu
apartamento tinha falta de algumas soluções elementares, como uma
mesa na cozinha, três ou quatro cadeiras, quadros nas paredes. Por
pouco dinheiro que tivesse, podia sempre arranjar formas imaginativas
de decorar o espaço em que vivia.
Agora,
já não tolerava o colchão ao pé das duas janelas. Parecia-me
impossível que tivesse sido eu a colocá-lo ali. Só alguém
desprovido de qualquer flexibilidade interior o teria feito. Era
evidente que ficava muito melhor junto à parede que dividia o quarto
de dormir da sala de estar porque tornava o espaço mais amplo.
Quando aparecesse quem quisesse dormir comigo, o colchão podia
sempre ser empurrado para o meio do quarto.
Olhando
para a sala de estar, pareceu-me que seria bastante preferível
decorar-lhe as paredes. Não fazia muito sentido que, ao entrarem em
minha casa, as pessoas batessem com os olhos numa superfície nua.
Depois
de me pôr a andar em círculos, puxando pela cabeça, concluí que
podia comprar umas reproduções baratas de artistas plásticos
consagrados, mas não achei que aquela solução tivesse alguma coisa
a ver comigo. Além de tudo, eu detestava fazer com que as coisas
esperassem. Ou eram feitas no momento, ou acabava por esquecê-las.
E, naquele instante, não dispunha de um centavo para comprar uma
reprodução que fosse. Nem para comprar tintas ou tela, se por acaso
quisesse resolver o assunto com as minhas próprias mãos.
Só
me restava a imaginação. Ao abrir o roupeiro, dei com umas calças
de ganga que nunca chegara a usar e, por entre um monte de coisas,
descobri umas botas certa vez compradas por engano.
Não
demorou muito até que estivesse tudo afixado na parede, com a ajuda
de uns pregos enferrujados que tirei de um armário velho da casa de
banho e de uns restos de rolo de fitacola. As calças de ganga
ficaram em posição diagonal no centro da parede, enquanto as botas
foram dependuradas cada uma do seu lado, como se alguém tivesse
acabado de ter um acidente e aquelas peças tivessem ido parar ali
por acaso. A construção dava um aspecto inquietante à casa.
Qualquer pessoa que lá fosse não deixaria de fazer perguntas sobre
o seu significado. E era isso que eu queria, que me interrogassem,
que me explorassem, que me vasculhassem, a fim de eu poder testar a
resistência da muralha que me cercava.
Descontente
com a obra realizada, esperei que anoitecesse e fui procurar nas
redondezas alguma coisa atirada para o lixo, mas que depois de
transferida para outro contexto pudesse ter algum valor.
Trouxe
para casa um tubo de escape que encontrei caído ao lado de um velho
automóvel sem dono. Ainda pensei escolher um dos assentos, mas
depois de reflectir, preferi o tubo de escape, por me parecer que o
metal, embora enferrujado, teria outro impacto.
Bastaram-me
dois pregos para colocar o tubo na parede mesmo em frente ao colchão.
Senti-me
feliz. E, finalmente, descansei. Sem nada que me afligisse, nessa
noite, deixei-me estar alerta durante horas, só para me comprazer a
imaginar as conversas que aquele estranho tubo de escape despoletaria
entre duas pessoas que estivessem deitadas no meio de um quarto, sem
sono, olhando a parede pelo tempo fora...
7
Durante
a maior parte dos dias em que nada tinha para fazer, ocupava a rotina
a pensar ou a mexer nas poucas coisas que me rodeavam. Eu já mudara
o colchão de sítio uma dezena de vezes; numa das pernas das calças
que pregara na parede acrescentara uma camisa castanha, criando um
enchumaço; e dentro de uma das botas pusera uma vela que encontrara
por cima de um dos armários da cozinha. A sala de estar havia sido
enriquecida por dois bancos, que eram na prática dois troncos de
madeira que eu descobrira perto de uma serragem e que enfiara à
pressa no porta-bagagem do carro, em plena luz do dia.
Com
o tempo, o meu apartamento ia ficando recheado, sem que se pudesse
dizer que deixara de estar vazio. Tudo era nudez entre as quatro
paredes que me abrigavam, ao ponto de me parecer que a casa ficara
muito mais despida e fria do que no dia em que eu a alugara. O meu
espaço não se assemelhava a nada do que eu já vira antes.
Quando
aparecesse alguém para me visitar, agora, eu já sentia mais
segurança. E a forma como decorara a casa sempre havia de constituir
motivo de conversa quando não houvesse nada para dizer ou quando não
interessasse tocar em certos assuntos.
Certo
dia de manhã, levantei-me, e percebi que era melhor descascar os
troncos de árvore, para evitar que alguém sujasse a roupa quando lá
se sentasse. Não perdi tempo e executei a tarefa com as próprias
mãos e com a ajuda de uma faca, o que não se revelou difícil,
porque a madeira estava mais do que seca. Nessa altura, reparei que
tinha a sala cheia de formigas e de bicharocos, que avançavam pela
alcatifa como minúsculos peixes vindos à tona de água.
Pus-me
a matá-los ao pontapé, com um enervamento desusado, tentando
impedir a invasão dos meus aposentos. Contudo, quantos mais bichos e
formigas matava, mais bichos e formigas apareciam por entre a penugem
rala da alcatifa. Multiplicavam-se de forma inexplicável como na
criação de um novo mundo que vinha abusivamente alterar a
tranquilidade dos meus dias. Pensei comprar à pressa um insecticida
qualquer, mas desisti da ideia por achar que não seriam aqueles
minúsculos seres repelentes que me obrigariam a gastar as últimas
moedas.
Decidi
não desarmar na legítima defesa dos meus redutos enquanto não
desse cabo daquele exército até ao último intruso. Só que a
precipitação de eliminar a bicharada me impedia de perceber que boa
parte das minhas arremetidas falhavam o alvo porque os bicharocos, de
tão pequenos que eram, encontravam protecção entre os pêlos da
alcatifa. O que também significava que o exército inimigo era mais
numeroso do que eu inicialmente calculara.
Quando
pensei que havia ganho o combate, por fim, e me dirigi para o duche
da casa de banho, verifiquei que muitos dos bichos que eu pensava ter
liquidado se haviam refugiado nas outras divisões da casa. Fora de
mim, peguei numa toalha, enrolei-a e pus-me a bater em tudo o que era
chão e parede, à esquerda e à direita, sem dó nem piedade. Nem
que tivesse de esventrar a casa toda, não perderia aquela batalha.
Em
último recurso, fiz a opção desesperada de encher baldes de água
e vazá-los por cima de formigas e bichos. Sem noção das
conseqüências do meu acto, só acordei para a realidade quando ouvi
uns toques valentes na porta. Inerte, de balde na mão, procurei
antecipar o que podia estar a acontecer. Fui abrir a porta e dei de
caras com um homenzarrão, armado de caçadeira, que dizia morar no
andar de baixo e ter a casa encharcada de água.
8
Se
havia alguém que eu nunca imaginara que um dia me pudesse entrar
pela casa dentro era a prima de Ralph Pike. Mas foi isso que
aconteceu um dia depois de ter visto a minha casa invadida por
milhares de formigas, o que me ia custando a vida às mãos do
vizinho de baixo, que só não fez uso da caçadeira ante a minha
repetida promessa de lhe pagar integralmente os danos causados pelas
infiltrações.
Ouvi
bater à porta e, ao abrir, deparei-me com a prima de Ralph. Ainda
hoje não sei o seu nome. Para mim, foi sempre a prima de Ralph.
Vinha de saia curta e blusa fresca, com uma pequena mala pelo ombro.
Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, ou que de repente se
arrependesse e fizesse marcha atrás, convidei-a a entrar. Reparei
que fixou prontamente os olhos na minha decoração das calças de
ganga e das botas pregadas na parede.
A
tua casa está muito diferente! disse, fazendo com que eu
ouvisse, pela primeira vez, a sua voz, de timbre rouco e pausado.
Disse aquilo e ficou especada a olhar, tentando compreender-me à luz
das conversas que me ouvira ter com o primo no dia em que lá fora
com ele.
Entretanto,
eu fechara a porta e convidara-a a sentar, quando me lembrei de que a
alcatifa ainda estava molhada do dia anterior. Avisei-a, quando ela
já cruzava as pernas para se sentar. Retesou-se logo, com um “ai”
nervoso, e fugiu para a cozinha, como se temesse pela sua segurança.
Descansei-a,
dizendo que apenas estivera a lavar a casa e que a alcatifa ainda não
tivera tempo de secar. Vi o seu rosto descontrair-se, com um sorriso
largo, e pôr-se a andar pelo apartamento, a pretexto de admirar as
minhas decorações. Todavia, notava-se um ligeiro retraimento em
cada passo que dava. Não era como o primo, que avançava de forma
descarada em direcção ao desconhecido.
Vendo
que ela ficara paralisada a olhar o tubo de escape que eu tinha
afixado na parede do quarto de dormir, sugeri que se sentasse no
colchão, o único lugar seco e confortável de que eu dispunha
naquele momento.
Ela
obedeceu, parecendo mesmo ter ficado mais à vontade a partir de
então.
Conversámos
sobre a importância do metal no quotidiano, sobre o significado do
automóvel nas sociedades modernas, sobre o efeito pernicioso dos
gazes lançados para a atmosfera.
O
tubo de escape, realmente, fora a escolha perfeita para a decoração
do meu quarto de dormir. Porque dava para falar acerca de tudo,
permitindo, ao mesmo tempo, que se mudasse de conversa com uma
facilidade estonteante. Era um tema altamente escorregadio e
imprevisível.
A
prima do Ralph entrara, provavelmente de forma inadvertida, na
vertigem de um carrossel sem tempo de cronometragem, uma espécie de
corrida automóvel sobre piso molhado. À medida que falava comigo
sobre as ideias que o tubo de escape lhe trazia à mente, ia ficando
cada vez mais desinibida, ao ponto de deixar que eu lhe colocasse uma
almofada por trás das costas, sobre a qual se reclinou com
naturalidade, movimento que fez com que o nível da saia lhe subisse
para o alto das pernas macias.
Não
me recordo das palavras que dissemos, nem do que pessoalmente senti,
muito menos imagino o que lhe passou pela cabeça. Foi uma força
estranha que se apoderou de nós, em simultâneo, e que nos arrancou
do espaço onde nos encontrávamos, levando-nos a perder a noção de
tudo à volta.
Ao
fim de mais de duas horas..., ela levantou-se e saiu sem grandes
despedidas nem promessas. Senti que algo acontecera, mas nunca pensei
que não voltaria a vê-la.
Dois
dias depois, telefonei e falei com a mãe do Ralph. Mantivemos uma
conversa cordial, que não demorou mais de uns breves segundos, o
bastante para eu ficar a saber que a prima do Ralph não desejava
voltar a ver-me. Logo a seguir, o telefone foi desligado sem me dar
tempo ao menos de gaguejar ou tentar descobrir os motivos de tal
decisão.
9
Tudo
se precipitou a partir daí. Ao fim de quase duas semanas no meu novo
apartamento, eu não arranjara emprego, provocara uma inundação
(que me comprometera a pagar) no andar inferior e a pessoa de quem
mais me aproximara não queria saber de mim para nada.
Telefonei
a Ralph na tentativa de apurar se ele estava ao corrente da situação,
se sabia novidades, se porventura tivera alguma conversa com a prima
que pudesse contribuir para o meu esclarecimento. Não notei qualquer
diferença na sua voz e tive a garantia de que ele me apareceria
naquele mesmo dia.
Esperei
em vão, durante horas. No dia seguinte, continuei a não ter sinal
dele. Recebera o aviso de que não devia abusar dos telefonemas para
sua casa, por isso, não voltei a contactá-lo.
Tinha
que encontrar uma solução imediata para a minha vida. Mudar de casa
era o que me restava fazer. Recomeçar do zero. Acontecesse o que
acontecesse.
O
primeiro apartamento que eu alugara por conta própria pouco ou nada
adiantara ao caminho que eu teria de trilhar. Não me sentia
propriamente fracassar, mas sabia que a única forma de evitar esse
destino era continuar em frente. Como nos semáforos,
independentemente de estarem vermelhos ou verdes, avançar era uma
obrigação, mesmo que os olhos nada vissem ou pressentissem.
Enquanto eu corresse, embora desconhecendo o que encontraria na
esquina mais próxima, ao menos não teria tempo de admitir perante
mim a derrota ou a inutilidade.
Correr
sem objectivos era o que contava para a avaliação do meu próprio
desempenho. Não interessava quanto tempo demoraria a chegar a algum
lado. O importante era não desistir. Mesmo que nunca atingisse coisa
alguma, havia de correr sempre. Bastava-me correr para sentir os dias
palpitarem à minha volta. A minha prioridade consistia em desafiar
todos os que procurassem identificar-me, reconhecer-me, aceitar-me.
Era uma maneira de não me distrair, de não me desviar, de me manter
fiel a qualquer coisa que eu ainda não entendia, muito menos
adivinhava.
Esperei
até à meia-noite que Ralph aparecesse. Mas nada. Em vez de me
desapontar, dediquei-me a analisar a situação numa perspectiva em
que a mudança de casa me provocava uma euforia desmesurada. Pus-me a
andar de quarto em quarto, como se a despedir-me, vendo-me já noutro
sítio, com outras janelas, outras paredes, outras cores.
Restava-me
um cheque. Recorreria a todos os argumentos para convencer o novo
senhorio a esperar quinze dias antes de o trocar.
Sem
perder tempo, desatei a amontoar as minhas coisas na sala de estar,
junto à porta de saída, sem esquecer o tubo de escape, que enrolei
num cobertor, para não dar nas vistas. Os troncos carunchosos
ficariam a servir de pasto para a bicharada.
Na
manhã seguinte, logo de ouvir o inquilino do andar inferior descer
as escadas para ir trabalhar, apressar-me-ia a encher o carro,
desaparecendo dali para fora de uma vez por todas, com a missão
imediata de alugar o primeiro apartamento que encontrasse disponível.
De
costas sobre o colchão, ainda demorei algum tempo a adormecer, tal a
excitação que sentia pelo que viveria nas próximas horas. Se não
fosse fácil conseguir um novo apartamento, eu poderia sempre ir
bater à porta de Ralph pedindo-lhe que me deixasse ficar em sua casa
por uma noite. Em último caso, tinha o carro.
Também
pensei que, em vez de dormir no automóvel, podia estudar a hipótese
de recorrer à pouca família que me restava, por um período de
tempo que me permitisse retemperar forças. Seria uma violação da
minha regra de nunca recuar um milímetro, mas não haveria mal em
ser flexível uma vez por outra. Todavia, afastei semelhante cenário.
Para trás de mim, havia uma dor tão grande que eu só podia
superá-la mudando de cidade, afastando-me de parentes e amigos,
esquecendo tudo de vez e desatando a correr para a frente, em várias
direcções ao mesmo tempo, sem me preocupar em escolher esta ou
aquela. Do meu passado, não restava qualquer sinal de brilho ou luz.
Só a sombra colossal de uma esfera negra sem nome.
Capítulo II
1
Conheci
Mervin num café, rodeado de amigos barulhentos, que riam por tudo e
por nada. Vendo-me só numa das mesas, diante de uma chávena de café
desde há horas abandonada pelo cliente que me precedera,
convenceram-me a puxar a cadeira para junto deles. Devia meter-se
pelos olhos dentro que eu estava ali sem saber o que fazer.
Faziam
parte de um grupo musical de bairro e divertiam-se a contar
peripécias de concertos e noitadas.
De
vez em quando, Mervin voltava-se para um dos que estava a seu lado e
dizia: Sol, fá, mi, ré, dó..., olha o meu popó!
provocando risos histéricos entre os presentes.
Para
não destoar do ambiente, eu desatava a rir, também, o que os
deixava visivelmente satisfeitos. A facilidade com que aderi à
galhofa e às histórias que contavam fez com que não demorasse
muito tempo para que me considerassem uma velha amizade.
Por
qualquer razão que eu não percebia naquele preciso instante,
apetecia-me fazer parte da banda de Mervin. Talvez eu tivesse jeito
para a música. Nunca me testara nesse campo. Os poucos músicos que,
por acaso, conhecera até então não me haviam dado qualquer
oportunidade e eu não tivera à vontade para me dispor a colaborar
com eles. Se conseguisse integrar-me no grupo de Mervin, venceria a
inibição e sempre ficaria com mais alguma coisa que fazer. De
resto, sabia-se lá se, um dia, aquela ou outra banda de que eu
viesse a fazer parte não assinaria um contrato milionário qualquer,
levando-nos a actuar nos maiores e melhores palcos do mundo. Eu tinha
que fazer alguma coisa comigo e a música podia ser um caminho a
experimentar.
Quando
todos se levantaram para sair, Mervin quis saber qual o meu destino.
Ao ser informado de que eu procurava residência, ofereceu-se
prontamente para me disponibilizar um dos quartos da casa onde vivia.
Podes
lá ficar o tempo que quiseres disse com voz excitada. Não
te preocupes com o pagamento!
Aceitei
a oferta sem hesitar um segundo, enquanto Mervin, por sua vez, me
pedia boleia, explicando que o carro dele estava na oficina.
Afinal
de contas, vamos para o mesmo sítio... comentou, justificando o
facto de precisar do meu transporte ainda antes de me fazer seu
hóspede.
Até
chegarmos ao sítio onde vivia, Mervin não se cansou de falar da sua
banda, pondo-me a adivinhar contactos com editoras discográficas,
abordagens da imprensa da especialidade, amizades com promotores de
concertos, aplausos, muitos aplausos...
Passei
dois semáforos vermelhos consecutivos, deixando Mervin subitamente
pálido e sem voz, o que me fez lembrar aquele segundo mágico entre
o fim de uma música e a reacção do público.
Queres
matar-nos? perguntou.
Respondi-lhe
com uma gargalhada e passei mais um vermelho.
É
já aqui disse Mervin, com um suspiro de alívio, sugerindo que
eu estacionasse em cima do passeio.
A
sua residência ficava no rés-do-chão de um prédio antigo carente
de obras. Mervin meteu a chave à porta com ar firme e deu-me
passagem para uma sala escura na qual só consegui divisar a
claridade trémula de uma porta ao fundo. Acendeu a luz e chamou:
Cat!
Vi
aparecer uma mulher jovem, de olhos baixos, desgrenhada, em camisa de
dormir, descalça, com um bebé nos braços, rodeada por três
crianças silenciosas, que se agarravam umas às outras e às vestes
da mãe, avançando em pequenos passos na nossa direcção.
A
minha mulher e os meus filhos! disse Mervin, abrindo os braços
de maestro.
2
Conversámos
durante todo o serão. Perto das onze da noite, Mervin interrompeu a
conversa comigo para informar a mulher de que, a partir daquela
noite, eu passaria a dormir no quarto dos filhos. Sem levantar
objecções, ela transferiu para os seus próprios aposentos o
colchão e os lençóis das crianças, que tinham adormecido sobre a
alcatifa da sala de estar. Em seguida, pegou nos filhos ao colo, um
por um, e levou-os para a cama. Isto, enquanto Mervin voltava a
concentrar em mim toda a sua atenção, falando-me das intermináveis
aventuras da banda que fundara e dirigia. Já bastante depois da uma
da madrugada, bocejou e disse que estava com sono.
Fui
buscar os meus haveres ao carro, estendi o colchão no quarto que
havia sido desocupado e amontoei o resto num canto.
Sentia-me
esfusiante com o que me acontecera naquele dia. Sem que nada o
fizesse prever, acabara por encontrar alojamento em casa de alguém
que nunca vira antes. E deixara de estar à deriva.
O
quarto que me fora destinado nem tinha uma janela para respirar.
Entrava-me pelas narinas o cheiro fresco das crianças que ali tinham
dormido até à noite anterior.
A
certa altura, ouvi uma cama ranger. Primeiro, pausadamente; depois, a
um ritmo mais acelerado. No quarto de Mervin não devia ser porque,
durante o serão, eu tinha reparado que a mulher dormia num colchão
sobre o soalho. O ruído que me chegava aos ouvidos era metálico e
persistente, teimoso como um móvel antigo, bamboleando-se para um
lado e para o outro, penetrando-me os tímpanos e enchendo-me de
visões. Só podia ser no andar superior. A ruideira demorou mais de
uma hora. Depois, houve um ligeiro rumor de vozes e o silêncio
voltou.
Durante
o tempo em que vivi na casa de Mervin, habituei-me a ouvir todas as
noites a sinfonia rangedora daquela cama no piso de cima, uma espécie
de máquina oleada, de cadência perfeita, que não hesitava em pôr
a trabalhar os seus mecanismos retesados e obedientes, infalivelmente
quando passavam trinta minutos da uma da madrugada, sendo o botão
desligado sempre depois das duas e muitas, conforme me foi possível
comprovar através do papelinho que durante algum tempo mantive no
bolso e no qual assinalava o início e o termo do concerto. Que me
lembre, só uma vez a máquina não trabalhou. E, nessa noite, não
preguei olho.
Uma
semana depois de me ter instalado em casa de Mervin, o meu quarto
ainda se encontrava como no primeiro dia, com tudo ao monte,
parecendo ser aquela a decoração que eu escolhera para o meu novo
espaço. Passava o tempo a reflectir na banda de Mervin, no instante
em que ele me convidaria a integrá-la, no que poderia ser de mim se
tal hipótese viesse a concretizar-se. Achava tentador o que ele
contava do grupo. E não atinava com mais nada.
Quando
me levantava de manhã e me dirigia ao duche, via Cat sentada no chão
da sala, descalça, com o cabelo caído sobre os olhos, em camisa de
dormir, tentando ocupar as horas com os filhos.
Por
vezes, sempre com a ideia na banda do marido, entretinha-me em
brincadeiras com as crianças, enquanto a mãe ia para a cozinha
fazer-lhes alguma coisa de comer. Por volta das dez, o bebé acordava
e eu corria a tirá-lo da cama, pondo-me a embalá-lo, à espera que
Cat tivesse oportunidade de lhe dar o seio.
Mervin
só regressava ao fim do dia. Com impressionante regularidade, às
sete da tarde, metia a chave à porta, entrava e distribuía beijos
pela família. Depois, sentava-se no sofá e dizia para Cat:
Tira-me os sapatos!
Ela
obedecia, religiosamente, enquanto eu ficava à espera que ele me
desse novidades da sua banda ou que, ao menos, me convidasse para
experimentar algum instrumento num dos próximos ensaios. Mervin,
porém, insistia em falar dos seus projectos musicais, sem me ter em
conta. Nunca cheguei a saber que interesse nutria por mim, se é que
o nutria, ou se me ia deixando ficar em sua casa sem pagar aluguer de
quarto pela simples companhia que eu fazia à mulher e aos filhos.
3
Vivi
durante alguns meses na casa de Mervin. Decorei o meu quarto com
luzes de cores variadas, tendo ocupado horas infindas a ligar fios
diversos, que fazia subir pelas paredes e que afixava em pregos, uns
mais altos que outros, para que a iluminação do espaço fosse a
mais equilibrada possível. Ao todo, eram mais de doze lâmpadas.
Achei que encontrara uma solução bastante melhor do que a das
calças de ganga e das botas pregadas na parede. Tudo por um preço
irrisório.
Já
passava da meia-noite quando dei por terminada a instalação
eléctrica. A minha primeira inclinação foi mostrá-la a Mervin,
mas achei mais sensato fazê-lo apenas na manhã seguinte. No outro
dia, esperei que se levantasse e chamei-o da porta do meu quarto.
Ele
veio ter comigo com cara de quem receava alguma ocorrência grave.
Vem
cá ver uma coisa! disse-lhe. Deixei-o entrar, premi o
interruptor e fiquei à espera da sua reacção.
Bestial!
foi o seu comentário, depois de habituar os olhos à claridade.
Parece uma discoteca! E logo recuperando a rapidez de
raciocínio: Um dia destes, havemos de trazer cá a banda para
ensaiar...
Depois,
chamou Cat para que viesse apreciar a minha iluminação. Parece
uma árvore de Natal! limitou-se ela a dizer, ainda ensonada.
Senti
um profundo desgosto com as suas reacções. Saltava à vista a minha
falta de originalidade. Como fora possível eu não ter previsto com
antecedência que todas aquelas luzes fariam lembrar uma discoteca ou
uma árvore de Natal? Depois de todo o trabalho que tivera, não me
apetecia desfazer a iluminação, apesar de reconhecer o completo
fracasso da minha ideia. As luzes seriam sempre problemáticas.
Porque fariam lembrar outras coisas, inevitavelmente. Nem a
possibilidade de a banda vir a ensaiar no meu quarto, o que faria
aumentar as minhas hipóteses de fazer parte dela, me levantou o
ânimo.
Às
três da manhã, ainda andava no quarto em busca de uma saída para o
impasse em que me encontrava. Eu sentia que dificilmente dormiria
naquela noite enquanto não encontrasse uma solução para todas
aquelas lâmpadas e fios. Para além disso, a pior coisa que me podia
acontecer era ter a consciência de que trabalhara em vão.
Pus-me
a contar as luzes pela quinquagésima terceira vez. Havia quatro
lâmpadas verdes, três vermelhas, cinco azuis e duas cor de laranja.
Catorze ao todo, e não doze. A forma desordenada como eu as colocara
era o que dava ao conjunto um ar de discoteca ou de árvore de Natal.
Fiz
a experiência de manter acesas só as lâmpadas verdes,
desenroscando todas as outras, uma por uma. Sempre era uma forma de
poupar dinheiro em interruptores, para além de que, àquela hora, o
comércio estava encerrado e eu não admitia adiar uma tal ideia para
o dia seguinte. O quarto ganhou uma dimensão completamente nova.
Parecia um relvado, uma pastagem, um jardim, um campo de golfe.
Senti-me bastante melhor.
A
seguir, optei pelas lâmpadas vermelhas. O quarto ficou quente,
infernal, demoníaco, um mar de chamas. Ideal para um momento de
intimidade...
Numa
terceira fase, acendi apenas as lâmpadas azuis e desenrosquei as
vermelhas, criando um ambiente celestial. Deixei-me estar de pé, em
atitude de deslumbre, a admirar os tons cósmicos que invadiam todos
os contornos do meu quarto.
Por
fim, as lâmpadas cor de laranja transformaram o espaço num
pôr-de-sol esplendoroso. O meu colchão dava a impressão de ser um
areal crepitante ao fim do dia.
O
entusiasmo que senti com o resultado das experiências fez com que eu
fosse mais longe e misturasse tons verdes e azuis, azuis e vermelhos,
azuis e cor de laranja, virando o meu quarto numa grande tela
luminosa, cheia dos mais diversos ambientes, possíveis de adequar a
diferentes necessidades e ocasiões.
Deixei
acesas as lâmpadas azuis e decidi, finalmente, descansar, quando o
relógio caminhava para as cinco da manhã. Senti um formigueiro na
alma. Os primeiros raios do dia entravam no quarto sem precisar de
janela, limitando-se a atravessar as paredes como se elas lá não
estivessem.
4
No
dia seguinte, não descansei enquanto não recorri a um terceiro
parecer sobre a decoração do meu quarto. Telefonei a Ralph,
informei-o que mudara de casa e ele ficou de me visitar naquele mesmo
dia à noite. Percebi que não faltaria ao combinado, nem que fosse
para conhecer a minha nova residência. Não me atrevi a perguntar se
viria sozinho ou com a prima...
Ralph
apareceu pouco depois das nove da noite. Vinha sozinho, de gabardine
comprida e cachecol. Apresentei-o à família com quem partilhava a
casa e conduzi-o para o meu quarto, que estava preparado para acender
as luzes vermelhas logo que eu carregasse no interruptor.
Não
está mal disse Ralph sem hesitações. Parece um bordel! Ou
melhor... acrescentou com ar sisudo, enquanto endireitava os
óculos sobre o nariz ...parece um quarto de aluguer rápido numa
pensão rasca!!
Para
não mostrar que me ofendera e para evitar que Mervin ouvisse o
comentário, dei duas gargalhadas sonoras, convidei Ralph a sentar-se
e fechei a porta.
Isto
ficava bastante melhor com uma iluminação normal disse ele
ainda. Que é que te passou pela cabeça para fazeres uma coisa
destas?
As
suas palavras faziam-me sentir vergonha e preferi desviar a conversa.
O
outro apartamento era bastante melhor voltou Ralph à carga.
Como consegues viver com todos estes miúdos à tua volta?
Falei-lhe
da banda de Mervin e das novas perspectivas musicais que se me
deparavam. Não me atrevi a falar da minha secreta esperança em
fazer parte do grupo, mas acrescentei que talvez pudesse vir a
aprender alguma coisa de música...
Ainda
te põem a tocar ferrinhos! disse Ralph, desatando a rir como um
perdido.
Percebi
que ele o havia dito por brincadeira, mas a sua frase insinuava a
minha falta de jeito para a música. A humilhação roçou-me os
dedos dos pés. Tocar ferrinhos era a função menos exigente numa
banda, geralmente atribuída a pessoas esforçadas que não sabiam
fazer mais nada.
Foi
de novo Ralph a quebrar o silêncio tortuoso que se seguiu:
Quando é que fazes alguma coisa pela tua vida?
Respondi-lhe
que tinha muito tempo à minha frente e que não ia deixar de viver
algumas experiências enriquecedoras a troco de uma qualquer
actividade rotineira, por melhor que esta fosse.
És
sempre igual comentou. E depois de algumas expressões de visível
tédio, perguntou: Vamos tomar um copo a um sítio qualquer?
Para
evitar que continuasse a invectivar-me com ditos pouco oportunos,
convenci Mervin a fazer-nos companhia.
Entrámos
numa cervejaria, onde nos demorámos quase duas horas, tempo durante
o qual se falou de um sem número de banalidades, ao ponto de a
qualquer instante se poder esperar que Mervin convidasse Ralph a
assentar arraiais em sua casa. A empatia entre os dois era evidente.
Embora fossem de formação completamente distinta, saltava à vista
que se entendiam na perfeição.
Um
sentimento de revolta tomou conta de mim, ao ver que Ralph
conquistara o coração de Mervin de forma idêntica à que
acontecera comigo. Se calhar, Ralph apenas ainda não fora convidado
a mudar-se para casa de Mervin porque não havia espaço disponível.
Só faltava eu receber ordem de despejo.
5
A
banda passou a ensaiar com frequência no meu quarto, embora eu nunca
ousasse pedir para que me deixassem participar. Sentava-me a ouvir os
acordes e batidelas na esperança de que um dia se lembrassem de mim.
Suportava tudo, por isso. A barulheira, a algazarra, os tropeções
nas minhas coisas. Apesar de me sentir mal por ver que os meus
haveres não eram poupados, admitia que se sentassem em cima dos meus
livros e apontamentos, que se deitassem na minha cama, que
guinchassem e saltassem, que mudassem as posições dos objectos a
fim de arranjarem lugar para os instrumentos, que comentassem entre
risos a minha decoração luminosa.
Quando
os ensaios terminavam, eu perdia horas a endireitar tudo, a recolocar
as coisas nos seus sítios, de joelhos limpando as beatas de cigarros
e a cinza.
Depois,
sentava-me na cama, a pensar em outras formas de tornar o meu espaço
mais cativante. Experimentava mudar as coisas de sítio, verificava o
funcionamento das lâmpadas, levantava-me para esticar a roupa da
cama e punha-me a andar pelo quarto, analisando de ângulos diversos
todas as possibilidades de colocação desta ou daquela peça.
Durante
o dia, os filhos de Mervin não largavam a porta do meu quarto.
Batiam com insistência até que eu a abrisse e pediam-me para
acender as luzes, ora as vermelhas, ora as azuis, ora as de outras
cores. Queriam a toda a força tocar nas lâmpadas com os dedos, mas
eu receava que algum deles fosse electrocutado, o que me deixava em
constante sobressalto. Faziam perguntas atrás umas das outras e
depois das minhas respostas voltavam à questão inicial, talvez na
tentativa de verificarem se eu mantinha a coerência das explicações.
Calçavam os meus sapatos, vestiam a minha roupa interior, imitavam
os instrumentos da banda e passeavam pela casa ruidosamente. Eu
procurava esconder a arrelia que me assaltava nessas ocasiões, para
não desagradar a Cat, e preocupava-me em seguir todos os movimentos
das crianças, para que nenhuma das minhas coisas se perdesse,
enquanto ia imaginando mentalmente novos sítios para as colocar ou
ia procurando não me esquecer dos lugares exactos em que as tinha
posto antes.
Quando
as devolvia aos seus lugares, procurava fazê-lo com o maior rigor.
Se alguma coisa ficava um milímetro desviada do sítio que eu lhe
havia atribuído de início, não descansava um minuto enquanto não
corrigia a situação. Colocava e recolocava as peças, mais para a
esquerda ou mais para a direita, até ter a certeza de que estavam
como eu as pusera no princípio. Bastava a dobra de uma peça de
roupa não estar à minha maneira para eu a fazer e refazer durante
uma infinidade de tempo, bastava a franja de um tapete ter ficado com
os fios sobrepostos para eu nunca mais descansar enquanto não a
conseguisse endireitar, bastava uma sombra desviada do seu sítio
habitual para me enervar... Para mim, uma coisa fora do lugar era
como um espírito perdido do corpo a que pertencia. Imaginava o seu
sofrimento e sentia-me na obrigação de contribuir para o reencontro
das partes. Podia demorar horas, mas eu não desistia enquanto não
via a forma plenamente reconciliada com o que a preenchia. Quando o
conseguia, notava-se que as coisas adquiriam um brilho próprio de
quem recuperava a tranquilidade dos elementos.
Ainda
hoje me intriga pensar na forma como ocupava os meus dias nessa
altura. E não me restam dúvidas de que grande parte das horas eram
passadas a tentar encontrar coragem para sugerir a Mervin a minha
entrada na banda ou a corrigir as posições dos objectos que os
músicos e as crianças se encarregavam de desendireitar. A
possibilidade da minha participação na banda provocava-me
ansiedade, um sentimento que eu resolvia dedicando-me a arrumar o
quarto, ou a desarrumá-lo, para o arrumar, outra vez, de uma forma
nova, que, frequentemente, pouco diferia da anterior.
6
Perto
da casa de Mervin, havia um pequeno jardim num recanto entre dois
quarteirões, onde passei a ir quando precisava de arejar as ideias.
Geralmente, não aparecia ninguém por lá. Sentava-me sempre no
mesmo banco, de frente para a paisagem dos edifícios caídos do céu.
Certo
dia, decidi sentar-me noutro banco ao acaso e quase me ia estatelando
no chão. O banco estava solto. Por segurança, levantei-me,
prontamente, e enquanto verificava o seu estado de solidez
assaltou-me a ideia de o levar para o meu quarto. Aquele banco, com a
tinta seca e descascada, poderia ser a solução de que o meu espaço
necessitava para ganhar um ar verdadeiramente original. Com aquele
banco, o meu quarto já não corria o risco de ser considerado uma
discoteca, uma árvore de Natal ou um bordel, antes se transformaria
num autêntico jardim, que eu podia iluminar de formas diferentes,
consoante a hora do dia ou da noite. Além de tudo, aquele banco
daria um jeito formidável aos ensaios da banda de Mervin. Podia
servir para descanso dos instrumentos e para os músicos se sentarem
durante os intervalos ou enquanto tocavam. Aquele banco seria uma
peça fundamental para o meu quarto, contribuindo para a resolução
de muitos dos meus anseios.
Avaliei
as hipóteses de o fazer mudar de ares. Calculei a distância a que o
jardim se encontrava da casa de Mervin. Contei as janelas dos prédios
através das quais o meu furto poderia ser detectado. Hesitei.
Correria o risco de me denunciarem à polícia. Mas não desisti.
Cuidadosamente,
voltei a sentar-me no banco, para garantir que ninguém se apoderaria
dele, pelo menos enquanto eu não decidisse o que faria.
Levar
o banco para o meu quarto teria os seus perigos, mas a compensação
era tentadora. Havia, no entanto, uma segunda dificuldade: o peso.
Seria eu capaz de transportar o banco até à porta da casa de
Mervin? E se durante o trajecto alguém me perguntasse de onde o
tirara ou para onde o levava?
Podia
sempre responder que me tinham encarregado de o reparar, mas qualquer
pacóvio perceberia rapidamente a mentira. Eu não tinha aspecto de
trabalhar para o Município e os bancos costumavam ser consertados no
próprio local.
A
hipótese mais razoável seria o recurso ao carro. Podia sempre
estacionar, durante a noite, perto do jardim e colocar o banco na
bagageira. Contudo, eu não tinha a certeza de o tamanho do meu
automóvel ser suficiente para carregar uma peça de tal dimensão.
Se assim fosse, só me restaria fazer o percurso entre o jardim e a
casa de Mervin com o porta-bagagens aberto, correndo o risco, embora
menor, de o meu furto ser detectado.
Analisadas
todas as hipóteses, a única que eu excluía era a de deixar o banco
onde estava. Medi-o com a mão aberta a toda a distância entre os
dedos polegar e mindinho, repetindo várias vezes a operação, a fim
de evitar qualquer lapso. Seis palmos de comprimento. Havia ainda os
pés retorcidos em ferro forjado, bem como o ângulo das costas,
cujas dimensões eram mais difíceis de calcular. Deixei-me ficar
pelo comprimento. Seis palmos.
Saí
do jardim e fui até ao carro verificar as medidas do porta-bagagens.
Talvez coubesse. À tangente.
A
solução de recorrer ao automóvel parecia-me inevitável, porque
mesmo que o banco de jardim me obrigasse a manter o porta-bagagens
aberto, aquela era a única forma que eu tinha de ultrapassar o
problema do peso. Não me podia dar ao luxo de o carregar às costas
e depois ver-me na contingência de parar para descansar no percurso
até à casa de Mervin. Quanto mais tempo demorasse a operação,
maiores seriam as possibilidades de me apanharem.
7
Voltei
várias vezes ao jardim durante o serão, com receio de que mais
alguém descobrisse que o banco estava solto e o levasse antes de
mim. Sentava-me e levantava-me, dava uma volta, sentava-me de novo...
Pensei
na hipótese de pedir ajuda a Mervin, mas achei que ele podia não
estar pelos ajustes, acabando por me dissuadir da ideia.
Fechei-me
no quarto, para que não adivinhassem o meu estado de ansiedade ou se
pusessem a fazer-me perguntas. Enquanto as horas não passavam,
aproveitei para ir estudando o sítio exacto onde colocaria o banco.
Tirava medidas, mudava objectos, desviava a cama, sempre em bicos de
pés, para evitar que pressentissem alguma agitação nos meus
redutos.
Por
volta da meia-noite, já Mervin e toda a família dormiam. À uma e
trinta, começou o concerto de guinchos no andar superior. Naquela
noite, desejei que os artistas se cansassem depressa porque não
convinha avançar com o plano enquanto toda a vizinhança não
estivesse em completo sossego.
Só
por volta das três da manhã, porém, deixei de ouvir os ruídos no
piso superior. Dei-lhes cerca de meia hora para adormecerem e, então,
quando não havia quaisquer sinais de alerta em redor, saí de casa
com o intuito determinado de trazer o banco do jardim para o meu
quarto.
Antes
de entrar no carro, dei um giro a verificar se todos os
estabelecimentos comerciais estavam encerrados ou se havia algum
guarda nocturno nas redondezas.
Sentei-me
ao volante e fui estacionar o veículo o mais perto possível do
jardim. Desliguei o motor, deixando-me ficar por uns momentos a
observar o que se passava na zona. A cidade estava mais calma do que
nunca, de onde se podia concluir que ninguém sonhava com o que eu me
preparava para fazer.
Estava
a poucos minutos de ter em minha posse, no meu quarto, um banco de
jardim, sem tirar nem pôr. Um banco de jardim permitir-me-ia viver
dentro de casa como no exterior, na rua, numa praça, uma sensação
que eu sempre alimentara, mas que nunca considerara estar ao meu
alcance.
Uma
casa era uma prisão, em certa medida. E a única forma de superar
essa sensação era abrir os espaços interiores ao mundo, derrubando
conceitos retrógrados e limitados. O banco de jardim jogaria
perfeitamente com o tubo de escape, do qual não me desfaria por nada
deste mundo. Em articulação com as lâmpadas que eu tinha no
quarto, o banco e o tubo de escape constituiriam um símbolo notável
da exterioridade que eu procurava. A confiança que sentia era tal
que, mesmo assim, achei por bem afastar todas as ideias que pudessem
prejudicar a minha concentração na tarefa que me esperava.
Saí
do carro e fui sentar-me no banco que planeava roubar, simulando
descontracção. Se passasse alguém, havia de pensar que eu estava
com insónias e que fora até ao jardim respirar o ar puro da noite.
Depois,
sem perder tempo, avancei como uma sombra que se desloca na noite
apagando ao mesmo tempo o seu próprio rasto. Agarrei no banco com
toda a força de que me sentia capaz, abri o porta-bagagens do carro,
meti-o lá dentro sem o conseguir fechar, pus a chave na ignição e
vim com o coração aos saltos até à casa de Mervin.
Entrei
sem fazer barulho, descarreguei o banco no lugar que havia
previamente estudado e sentei-me nele, em várias posições, a ver
se estava tudo bem, se a mudança não tinha deixado atrás alguma
peça essencial.
O
efeito do banco no meu quarto era surpreendente. Acendi todas as
lâmpadas e deixei-me respirar a nova atmosfera.
Fui
buscar à cozinha um pano molhado com o qual me pus a limpar o banco
de impurezas, restos de tinta e poeiras. A partir daquele momento,
aquele banco era meu, só meu, em todos os sentidos, ao ponto de eu
sentir que podia mesmo reivindicar a sua autoria.
Coloquei-lhe
alguns livros em cima, de forma casual, para dar a ideia de que a
peça estava ali há bastante tempo e que fazia parte dos meus móveis
de estimação.
No
dia seguinte, deixaria Mervin certamente surpreendido e tinha a
certeza de que ele concordaria com a minha sugestão de que o banco
daria bastante jeito aos ensaios da banda.
8
Mervin
já tinha saído quando acordei. À noite, não apareceu. Cat disse
que tinha ido tocar com a banda num sítio qualquer e que no dia
seguinte teria outro espectáculo. Senti uma profunda mágoa por não
me terem convidado para os concertos, depois de tantas vezes ter
cedido o meu quarto para os ensaios da banda. Feriu-me nem terem
pensado em mim, sequer, para iluminar o palco, instalar os
equipamentos, controlar o som dos microfones. Ainda por cima, eu não
me esquecera do grupo quando decidira apropriar-me do banco de
jardim...
O
facto de Mervin nada me ter dito sobre os espectáculos da banda
significava que eu não tinha hipóteses de vir a fazer parte dos
seus projectos musicais. Senti um vazio tal que nenhuma pedra alguma
vez poderia preencher. Aquela atitude marcaria de forma decisiva o
nosso relacionamento a partir de então. De súbito, eu nada teria
para dizer a Mervin se o enfrentasse naquele preciso momento. Para
ele, se calhar, esquecer-me fora o gesto mais natural deste mundo.
Mas, para mim, significou o fim de um tempo. Desse dia em diante,
eliminei por completo a música da minha vida. Nem uma nota, um
acorde ou o simples trautear de uma canção.
Deixei
de sentir que vivia em casa de Mervin. O quarto que ele me cedera já
cheirava a outra pessoa. Só tive pena de não lhe poder mostrar o
banco de jardim que passara a fazer parte do meu mobiliário. Nem
quis saber a opinião de Cat, que me parecia mais distante e evasiva
do que o habitual, como se adivinhasse o meu ressentimento, mas não
tivesse palavras para explicar a atitude do marido.
O
banco de jardim também viera encher demasiado o meu quarto. Estava
em todo o lado. Sempre que eu me movimentava numa ou noutra direcção,
acabava por lhe tropeçar nas costas ou nos pés, ao ponto de em
poucas horas ter ficado com várias nódoas negras nos joelhos e nas
ancas.
Como
não admitia a hipótese de me desfazer do banco, nem de qualquer
outra peça que eu carregava de casa em casa, só me restava mudar de
residência, uma perspectiva que o comportamento de Mervin viera
facilitar.
Eu
queria todo um jardim, um amplo jardim, e não apenas um banco, o que
exigia bastante mais espaço do que aquele de que eu dispunha no
momento. Sentia necessidade de largueza. Da mesma forma que me
apoderara do banco durante a noite poderia também arranjar outras
coisas para ornamentar a minha próxima casa. Afinal, a originalidade
não tinha preço. Só exigia atenção, ousadia e persistência.
Era
evidente que não desembolsava qualquer dinheiro para ficar em casa
de Mervin, o que deixaria de acontecer quando mudasse de casa, mas eu
sentia que estava perto de arranjar emprego. Qualquer coisa me dizia
que, mais dia menos dia, me chegaria uma resposta afirmativa de
alguma empresa. O importante era avançar no momento exacto, acertar
no dia, se calhar de manhã, ou talvez de tarde. Uma hora poderia
fazer a diferença porque seria bastante para alterar a disposição
de um chefe ou de um simples empregado de recepção. Se algo
corresse mal comigo, menor firmeza de passos ou clareza de voz,
poderia deitar tudo a perder. Seria fundamental apresentar um ar
convicto e destemido. Haveria ocasiões, contudo, em que eu tinha a
nítida sensação de que não valeria a pena tentar. Porque eu não
estava com a disposição perfeita ou porque o momento não seria o
mais indicado. Nessas alturas, e afastada de vez a perspectiva de uma
carreira musical, eu ficava de novo sem saber o que iria ser de mim,
deixando-me enlear numa teia de sonhos.
Capítulo III
1
Utilizei
o meu último cheque para alugar uma nova casa, grande e cara, com
relvado e algumas árvores nas traseiras. Tive que fazer duas viagens
de carro para transportar tudo o que acumulara no quarto que me
servira de abrigo durante os últimos meses. Ao despedir-me de Cat,
prometi voltar alguns dias depois para falar com Mervin, sabendo
contudo que não o faria. Os miúdos vieram acenar-me à porta com os
seus rostos de pequenos melões abandonados e eu carreguei no
acelerador já a imaginar a forma como disporia as minhas coisas na
residência que acabara de arrendar.
Por
melhor emprego que obtivesse, eu sabia que não conseguiria pagar o
segundo mês de renda da nova casa. Isso queria dizer que dentro de
quatro semanas teria que arranjar outro sítio para residir. Mas não
me apetecia dar atenção ao assunto naquele momento. Um mês era
muito tempo. Passariam milhares de minutos antes que eu tivesse que
me preocupar com a situação. Até lá, poderia sempre surgir algum
projecto ou ideia que me levasse a contornar a dificuldade.
O
que me interessava era ter a certeza de que viveria sem restrições
nos próximos trinta dias. Queria viver à larga, sem me apoquentar
com nada, ocupar espaços vastos, sentar-me a olhar em volta, pensar
e repensar em coisas diferentes, dar campo à minha criatividade,
pôr-me em causa, questionar o que se passava à minha volta,
construir o futuro em cada instante, dia após dia.
Se
não tivesse peças suficientes para dar vida à casa, deixaria
alguns quartos vazios, ou poderia mesmo alugá-los, enquanto
procuraria tirar o máximo partido dos restantes. Eu não precisava
de todo o espaço que passava a ter disponível. Bastava-me um para
dormir, a sala de estar e a cozinha.
É
verdade que, mesmo sem pagar a renda no final do mês, poderia
recusar-me a abandonar a casa, esperando que o problema se resolvesse
em tribunal, mas eu não era capaz de ver o senhorio bater-me à
porta todos os dias com o intuito de cobrar o seu dinheiro, se
calhar, indo ao ponto de fazer cenas de rua ou ameaçar-me de
caçadeira em punho. Preferia sair de livre vontade.
Entre
a cozinha e a sala de estar, onde saltava à vista uma felpuda
alcatifa castanha, havia uma parede baixa, com uma passagem entre as
divisões e que permitia uma ampla visão logo que se entrava. Nos
primeiros dias, cheguei a especar-me por diversas vezes à porta da
rua, do lado de dentro (para que os vizinhos não notassem) só para
apreciar o enorme espaço que a sala de estar e a cozinha ocupavam,
enquanto ia congeminando soluções para tornar tudo aquilo
surpreendente. Deixava-me estar ali por tempos sem fim, observando as
distâncias, a cor clara das paredes iluminadas pelo janelão da
cozinha que dava para as traseiras, a altura dos rodapés, as tomadas
e interruptores eléctricos colocados nos seus sítios, o formato das
portas ligeiramente abauladas na parte superior. A seguir, não
resistia à tentação de me despir e andar por toda a casa entregue
à minha liberdade. Não contava as horas. Perdia-me nelas. Só metia
alguma coisa na boca quando o estômago solicitava. Sempre que não
me apetecia ir à rua, para não ter que me vestir nem enfrentar os
olhares da vizinhança (que pareciam adivinhar que eu não viveria
ali por muito tempo) limitava-me a ingerir pão com manteiga e leite.
Se
alguém me visse andar pela casa, sem destino, sem qualquer agasalho,
sem preocupações estéticas ou morais, só poderia concluir que eu
era feliz. Mas eu sabia que em todos os meus movimentos havia uma
camada fina de dor que corria o risco de fracturar ao mínimo
deslize. Por isso, ria para espantar a ameaça. Ria e voltava a rir,
enquanto circulava por todas as divisões da residência, abrindo e
fechando portas, mostrando-me, conhecendo os novos espaços em que eu
passava a reflectir-me.
2
Três
dias depois de me ter instalado na nova casa, aperaltei-me e
dirigi-me à empresa a que me candidatara para fazer traduções.
A
recepcionista não pareceu dispensar-me mais atenção do que
dispensaria a qualquer outra pessoa que a abordasse, o que me deixou
com um ligeiro atordoamento. Antes de telefonar para o gabinete do
gerente para o informar da minha presença, ainda se ocupou de
algumas tarefas que tinha em mãos, dando-me tempo para recuperar e
apresentar um ar sorridente e confiante.
Ao
fim de uns cinco minutos, fiquei a saber que me atenderiam dentro de
breves instantes. Conduziram-me a uma pequena sala de espera, onde a
secretária do gerente, com aspecto de estar a caminho dos quarenta
anos de idade, me perguntou se eu desejava café.
Pode
ser... balbuciei, apercebendo-me, prontamente, de que tinha sido
pouco firme na resposta e que deveria corrigir a minha postura, não
fosse o eco da minha hesitação chegar aos ouvidos do chefe. Mas a
expressão “pode ser” também deixava no ar a ideia de que eu não
era uma pessoa inflexível ou intratável. Significava que tinha
ponderado o convite para tomar café, apesar de o mesmo constituir
uma simples formalidade. Portanto, nem tudo estava contra mim naquele
momento.
A
secretária trouxe-me a chávena fumegante, dando-me oportunidade de
lhe ver a face em diversos ângulos e claridades. Depois, deu meia
volta e saiu com ligeireza.
Dois
ou três minutos mais tarde, reapareceu, dizendo que estava à minha
disposição se eu desejasse mais alguma coisa.
Para
descontrair, pus-me a andar de um lado para o outro na sala, tentando
ao mesmo tempo adivinhar os termos em que decorreria a minha conversa
com o editor. Mas era a imagem da secretária que me assaltava a todo
o momento. Tinha o ar fresco e determinado das pessoas experientes. O
seu olhar era penetrante, apesar de não ultrapassar os limites do
profissionalismo. Não fui capaz de perceber os seus sentimentos. Por
mais voltas que desse à cabeça, havia em torno dela a muralha de
uma frieza cerebral que não me permitia qualquer aproximação.
Pensando bem, podia dizer-se que a sua face tinha um ar másculo. E
era isso que dificultava a apreensão do seu íntimo.
A
fim de tirar dúvidas, pus a hipótese de pedir mais um café, mas
recuei nos meus propósitos para não correr qualquer risco de
indiscrição.
A
certa altura, a porta abriu-se e a secretária veio dizer-me que o
gerente tinha acabado de receber um telefonema que iria demorar, se
eu não me importava de voltar no dia seguinte. Ante o meu ar de quem
avaliava se me estaria a ser apresentada uma desculpa ou se o gerente
estava realmente a braços com um telefonema prolongado, a secretária
acrescentou ainda, com um breve sorriso, que as suas feições
masculinas tornavam largo:
Mas
pediu-me para dizer que lhe vai dar um livro para traduzir. Amanhã,
trocarão impressões sobre o assunto.
Não
quis ouvir mais nada. Tinha acabado de arranjar trabalho, o que me
permitiria encarar a vida de uma forma completamente nova.
Vim
para casa mais confiante do que nunca. A actividade de traduzir
sempre me parecera a mais adequada à minha forma de ser porque me
deixava livre de horários e me dava a possibilidade de trabalhar em
casa. Assim, ao contrário do que acontecia com a maioria das
pessoas, até nem teria que me preocupar com a indumentária que
usaria todos os dias. Só esperava que me dessem para traduzir uma
obra que não apresentasse grandes dificuldades técnicas. Não tanto
por duvidar da minha competência para executar a tarefa, mas
sobretudo para me deixar mais tempo livre para a casa que acabara de
alugar. Eu havia de traduzir ao comprido na relva, na cama, na mesa
da cozinha, na alcatifa, enquanto faria intervalos para meter uma
fatia de queijo na boca, ouvir música, dedicar-me a pregar coisas
nas paredes, andar sem roupa pela casa, argumentar em voz alta com o
meu próprio umbigo...
3
Os
primeiros três dias passaram sem eu me aperceber se tinha feito sol
ou chuva. Deixei em cima do mesão da cozinha o pequeno livro que me
deram para traduzir num prazo de duas semanas e entretive-me a
organizar a casa. Duas semanas era tempo mais que suficiente e eu não
duvidava de que quatro ou cinco dias me bastariam para resolver o
assunto. Nem me voltei a lembrar do convite para jantar que no
segundo dia em que me desloquei à editora fiz à secretária do
gerente, violando as regras do bom senso mais elementar. A minha
iniciativa foi inesperada, despropositada e precipitada. Louise,
assim se chamava ela, ficou naturalmente perplexa e gaguejou uma
resposta cujo sentido não cheguei a perceber. De qualquer forma, o
facto de não ter recebido um rotundo “não” já me parecia
extremamente positivo. Disse-lhe que lhe telefonaria mais tarde para
combinar o dia e a hora e desapareci a toda a pressa não fosse ela
arrepender-se. O perfil do seu rosto não me saía da memória.
Quando,
passados dias, recordei o episódio, continuava sem perceber como
fora capaz de dirigir semelhante convite a uma pessoa que só vira
duas vezes, ainda por cima pondo em risco a minha relação
profissional com a editora na qual Louise desempenhava um cargo de
relativo peso. Para além do mais, eu nem sequer sabia se o dinheiro
que me restava seria suficiente para pagar o jantar de duas pessoas
num restaurante de qualidade mínima.
Mesmo
assim, numa sexta-feira à tarde, telefonei a Louise, a perguntar se
estava tudo bem. O pior que poderia ouvir seria que o gerente achara
por bem prescindir dos meus serviços.
Depois
de trocarmos cumprimentos ao telefone, contudo, senti que o meu
despedimento não estava em causa. Enchi-me de coragem e
perguntei-lhe se estava disponível no dia seguinte, à noite. Mais
sóbria do que nunca, ela limitou-se a responder:
Estou.
Fui
buscá-la a casa, onde cheguei através das instruções que anotara
num pequeno bloco, depois de uma quantidade de voltas à procura da
rua, que era de apenas um sentido, e que ficava numa das zonas
residenciais menos conhecidas da cidade.
Fora
do trabalho, Louise era igualmente cerebral e distante. Quando entrei
em sua casa, ofereceu-me uma bebida e sugeriu que me sentasse por uns
minutos, enquanto ela se aprontava.
Passei
todo o jantar com um aperto no coração, por recear que a conta
fosse demasiado elevada para as minhas posses. E quando a factura me
foi apresentada, por pouco não fui vítima de um colapso. Tive, no
entanto, o sangue frio para dar a desculpa de ir aos lavabos e chamar
o empregado à parte, dizendo-lhe que me esquecera do cartão de
crédito. Prometi-lhe pagar a conta no mais curto espaço de tempo, e
pus-lhe na mão todo o dinheiro de que dispunha no momento.
Durante
a refeição, Louise limitou-se a falar duas ou três vezes. Soube
que era divorciada, que tinha um filho de 17 anos que fora passar o
fim-de-semana a casa de uns amigos e pouco mais.
Tive
que alimentar a conversa quase permanentemente. Falei-lhe da casa que
acabara de alugar, dos sonhos que tinha para o futuro, de alguns
sítios que conhecia na cidade, enquanto ela me ouvia, levando a
comida à boca com cerimónia e recato. Por vezes, reagia com um
pequeno sorriso a alguma das minhas conversas, mas até nessas
ocasiões o seu semblante conservava a tensão.
Depois
da sobremesa, puxou de um cigarro e fumou-o, pausadamente, sem nunca
tirar os olhos de mim. Havia ocasiões, sobretudo vendo-a sentada
atrás de uma mesa, em que eu não sabia bem se estava perante uma
mulher ou um homem.
Quando
saímos e entrámos no carro, ela perguntou-me de chofre:
Posso
dar-lhe um beijo?
Antes
que eu tivesse tempo de reflectir no significado da pergunta, senti
os seus lábios colados aos meus e a sua língua à procura da minha.
O seu gesto não demorou mais do que uns segundos, após os quais
Louise imediatamente se retraiu, dizendo de forma seca e cortante:
Desculpe!
Esqueça o que se passou...
Reagi
como se nada de especial tivesse acontecido. Fiquei a gostar de
Louise. Fui levá-la a casa e fiz-lhe companhia até perto da
meia-noite.
4
O
banco de jardim era a única peça que eu tinha na sala de estar.
Parecia-me pouco. Embora eu apreciasse uma casa sem muita mobília,
aquela onde eu agora residia era demasiado grande para móveis tão
escassos. Percebi que tinha que fazer alguma coisa para dar a volta à
situação.
Certa
vez, tinha visto numa loja uma mobília de sala toda feito de troncos
de árvore, mas o seu preço não estava ao meu alcance.
Remoí
o assunto durante algumas horas e acabei por concluir que a solução
não era assim tão difícil. Porque não havia de fazer uma mobília
semelhante com as minhas próprias mãos? Bastar-me-ia arranjar
pregos, cola e serrote. As árvores estavam ali mesmo diante dos meus
olhos nas traseiras da casa. Se as cortasse durante a noite, ninguém
daria por nada. E quando o senhorio descobrisse já seria tarde.
Voltei
ao estabelecimento onde tinha visto a tal mobília de troncos e
pus-me a inspeccioná-la com detalhe, simulando interesse na sua
compra. Registei de memória a forma como os troncos se encaixavam, a
inclinação das costas, o formato dos pés, a largura das tábuas
que serviam de assento. Cheguei mesmo a dizer ao empregado, que não
me largara um minuto, que preparasse a encomenda para eu a levar, mas
quando ele já dera início à tarefa, informei-o de que afinal teria
que voltar a casa para tirar uma dúvida sobre medidas e que
regressaria dali a um quarto de hora. Desapareci a alta velocidade,
para não me esquecer dos pormenores da construção, e pus mãos à
obra.
Passei
a noite a cortar troncos de árvore com um serrote emprestado por um
velhote que morava duas casas abaixo da minha e que se ofereceu para
me ajudar, caso fosse necessário. Expliquei-lhe que se tratava de
uma insignificância e corri a fechar-me em casa.
Um
dos vizinhos do lado telefonou perto da uma da manhã a protestar por
causa do barulho que eu vinha fazendo há horas. Pedi-lhe desculpa
pelo incómodo e prometi que só voltaria ao trabalho no dia
seguinte. Contudo, fui incapaz de controlar o impulso, além de que
receava esquecer-me das soluções de pormenor que memorizara na
loja. Prossegui o corte dos troncos, embora serrando bastante mais
devagar, quase em movimento de câmara lenta, o que fez com que a
tarefa demorasse praticamente o dobro do tempo a concluir.
Quando
amanheceu, eu tinha a casa cheia de pó de madeira e de troncos de
árvore espalhados em todas as direcções! Parei, finalmente, olhei
à minha volta, e senti uma profunda satisfação ao verificar que
avançara bastante na concretização do meu plano. Tinha os braços
retesados pelo esforço de serrar durante horas, as pernas
arquejantes, a respiração pesada e uma dor fina no peito, mas
considerava que tinha valido a pena, nem que fosse para perder alguns
quilos.
Um
dia, quando tivesse a mobília pronta e a casa apresentável, havia
de convidar Louise para me visitar. Trocaria impressões com ela
sobre os arranjos do meu espaço e, pela sua reacção, ficaria a
conhecê-la melhor. Talvez me voltasse a beijar com os seus lábios
grossos de mulher, que faziam lembrar a boca de um homem. Ou talvez
fosse mais longe, perdendo de vez a compostura.
Estendi-me
na alcatifa e vi o rosto vincado de Louise na minha frente com uma
nitidez superior a todas as realidades. Havia na expressão da sua
face um halo de sensibilidade e dor para lá da dureza das formas com
que enfrentava a rotina dos dias. Apeteceu-me fotografá-la,
registá-la, imprimi-la numa das paredes da minha casa.
Senti-me
ir ao fundo, adormecer, perder o contacto com as coisas. Só o rosto
de Louise permanecia diante dos meus olhos como uma ameaça de
liberdade. O seu cabelo liso e negro, até à altura do pescoço e
caído em franja sobre a fronte, surgiu-me, de repente, pintado de
verde. A sua pele branca e bem tratada, balizada por linhas rígidas,
ganhou tons avermelhados, tons de fogo, e o seu reflexo obrigou-me a
abrir os olhos, na tentativa de não perder o fulgor da imagem. Mas
percebi que devia fazer precisamente o contrário, deixar-me cair no
sono, se não queria perder o brilho daquela face crispadamente doce,
dominada pelo contorno dos lábios, que acabei por pintar de negro, a
cor do inominável.
5
Decidi
expor livremente pela casa todas as minhas peças de vestuário,
dependurando-as em pregos que afixei nas paredes da sala de estar, da
cozinha e do meu quarto de dormir. O espaço ficou repleto de cores e
de formas que rapidamente lhe transmitiram uma sensação de alegria
que eu nunca imaginara possível e que se coadunava perfeitamente com
a mobília de troncos, que eu concluíra, e na qual depositava um
grande orgulho, apesar de não ter conseguido evitar que um dos
cadeirões ficasse com um pé mais curto do que os outros. Como não
me apeteceu serrar todos pela mesma medida, resolvi o defeito pondo
um cartão dobrado por baixo do pé coxo.
Na
minha casa, cada peça de vestuário era uma obra de arte. Calças,
blusas, meias, sapatos, casacos, pullover’s, jardineiras, calções
mereciam ser apreciados nas suas formas e expressões mais
imprevisíveis. Vista assim, na parede, dependurada ao vento da alma,
a roupa adquiria um outro sentido. E dizia muito mais de mim do que à
primeira vista podia parecer. As cores e dimensões constituíam uma
revelação. A avaliar pelo tamanho das peças, eu era bastante maior
do que diante do espelho. Dava a ideia de que toda aquela roupa nem
era minha, mas sim de outro corpo, outra vida, outra sensibilidade,
sem qualquer relação comigo. A descoberta dessa “outra pessoa”
que vestia e habitava a minha roupa provocava-me uma ansiedade
tranquila, dando-me vontade de conhecê-la, falar com ela, tocá-la.
Cheguei a imaginar que andava pela casa comigo, que se sentava à
mesa, que me acompanhava no duche. E houve mesmo alturas em que tive
a nítida impressão de me passar os dedos pelo ombro e pelas costas
como se me quisesse comunicar alguma coisa de extremamente secreto.
O
vestuário que eu decidira dependurar nas paredes era uma maneira de
eu me abrir, de me expor, de me dar. A partir daquela altura, não
podiam acusar-me de ser uma pessoa reservada.
A
roupa acabava por ser uma espécie de segunda pele e era esta
precisamente que eu mostrava a quem quisesse ver.
Os
roupeiros eram espaço perdido dentro de uma casa: escondiam a roupa
(que se fez para mostrar) e, além de tudo, impediam-na de respirar,
arejar convenientemente, deixando-a, muitas vezes, húmida e com
cheiro a mofo. Os roupeiros eram o esconderijo de um dos nossos bens
mais preciosos, eram o túmulo para onde atirávamos a degradação
do nosso segundo corpo.
Todos
os dias de manhã, em vez de me dirigir ao guarda-fato para escolher
o que vestiria naquele dia, seria muito mais aliciante pôr-me a
andar pela casa, olhando as paredes e imaginando a combinação das
peças conforme o meu estado de espírito. Sentar-me-ia à mesa a
saborear uma bolacha com chá, enquanto reflectiria sobre a relação
entre as minhas escolhas e o que faria nas horas seguintes, a cor do
dia, o estado do tempo. Com a roupa exposta de tal forma, eu não
teria hipóteses de me arrepender ou de falhar nas opções por esta
ou aquela blusa, meias, sapatos, calças, cinto, chinelos. Era tudo
mais óbvio, mais fácil, mais de acordo com a minha sensibilidade. O
vento exigia determinadas cores, o sol outras, as nuvens outras
ainda, como se as condições do tempo reflectissem o que me ia na
alma, ou viceversa. O equilíbrio entre a natureza e o meu ser
tornava-se obrigatório. Quando não o conseguia, o trabalho não
rendia, as ideias não surgiam. Tudo se tornava mais pesado e denso
em mim, lançando sombras sobre o que me rodeava. Nessas ocasiões,
eu punha-me a trocar as coisas de sítio, para que a leitura que
fazia delas e das suas posições me permitisse outra interpretação,
outra perspectiva, outro entendimento. Trocava uma camisa por um
lenço ou uma peça de roupa interior por uns calções e fazia-lhes
enchumaços com panos de louça para que ganhassem mais realidade.
Segundos depois, arrependia-me, e voltava a pôr tudo como estava
antes. A seguir, voltava a experimentar outras soluções. Havia
sempre mil e uma maneiras de fazer as coisas. Nada me preenchia tanto
como a entrega às inúmeras opções que eu tinha ao dispor. O
pormenor mais insignificante fazia-me renascer.
6
Louise
veio finalmente a minha casa, mas começou por dizer que não de
demoraria, o que provocou em mim um ligeiro calafrio.
Logo
que entrou, senti que a sua pele brilhava na minha, senti que o seu
coração batia ao mesmo tempo que o meu. Mas não sabia em que
termos recebê-la porque me inibira ao ouvi-la dizer que não se
demoraria. As suas palavras fizeram ruir todas as minhas expectativas
para a noite.
Em
poucos segundos, tive que pensar noutras coisas, agarrar-me a outras
soluções, orientar-me noutros sentidos, na tentativa de evitar que
Louise subitamente se arrependesse de estar ali e dissesse que tinha
outro compromisso, levantando-se e saindo.
Sempre
que sentia maior proximidade com uma pessoa, o que mais me afligia
era o papel que os outros desempenhavam na sua vida. Os outros, que
eu não conhecia, e com quem essa pessoa se relacionava. Não
conseguia deixar de ver neles concorrentes sérios e perigosos, com
os quais eu perderia qualquer corrida ou disputa. Por mais miserável
ou insignificante que fosse a concorrência, eu tinha a certeza de
estar sempre em desvantagem.
Olhava
para Louise na minha frente e parecia-me ver as ideias que dançavam
no seu cérebro. Tinha com certeza reparado na minha roupa exposta
nas paredes, mas não fizera qualquer comentário. Nem um sorriso de
aprovação, ou de rejeição. Depois, notei que se interrogou sobre
quais seriam as minhas intenções ao convidá-la para me visitar,
tendo em conta o ambiente que eu criara em minha casa. Num terceiro
momento, percebi nitidamente no seu olhar que tivera a preocupação
de me dizer que não se demoraria por simples precaução, não fosse
dar-se o caso de se deparar com uma situação incontrolável. Por
fim, verifiquei que, apesar de se sentir algo estranha por a minha
casa nada ter a ver com a dela, conseguiu descontrair-se
interiormente.
Acabou
por se sentar num dos cadeirões de troncos, recostou-se, respirou
fundo e disse: Cá estamos...
Nesse
momento, apeteceu-me correr para ela e abraçá-la. Mas retraí-me. A
sua expressão “cá estamos”, por ser plural, por não me
excluir, fez desaparecer o desânimo que as suas primeiras palavras
me haviam provocado. De repente, senti que toda a concorrência tinha
desaparecido. Porque Louise podia ter dito apenas “cá estou”, em
vez de dizer “cá estamos”. O facto de ter dito “cá estamos”
denotava uma cumplicidade íntima que vinha de encontro ao que me
fazia vibrar naquela noite.
Louise
sentia-se duas pessoas ao mesmo tempo. Eu via esse drama, claramente,
nos seus olhos. Possuía duas sensibilidades, duas almas, duas formas
de estar. Por vezes, tinha a sensação de ser homem, outras vezes
tinha a sensação de ser mulher. Ela tinha estampado no rosto esses
dois caminhos em que se bifurcava.
Apesar
de não restarem dúvidas de que todas as mulheres eram homens e de
que todos os homens eram mulheres, a verdade era que a maioria dos
humanos não pensava assim, transformando o sexo numa disputa
inglória entre dois seres, a pretexto de uma diferença
insignificante entre os seus órgãos genitais. Era uma luta que
apenas tentava desfazer a contradição íntima que os dilacerava, o
sentimento de serem uma coisa e o seu oposto, simultaneamente.
Louise
ficou toda a noite em minha casa. Esqueceu-se do seu rosto masculino,
perdeu a compostura de mártir e fez-me esquecer tudo, levando-me com
ela numa viagem sem amargura e sem relógios.
Conversámos
e rímos perdidamente, chorámos e desabafámos sobre tudo o que nos
doía, como se tivéssemos voltado à adolescência, por entre o eco
das gargalhadas e das lágrimas que denunciava a distância que
separava o presente e o passado das nossas vidas.
Por
volta das oito da manhã, já tonta de sono, Louise despediu-se.
Tinha que ir trabalhar. Com a mão no trinco da porta de saída, fez
uma pequena pausa, rodou sobre si mesma, olhou para as minhas paredes
e não foi capaz de se conter: Parece uma loja-de-pronto a
vestir, não é?!...
7
Não
me deixei ir abaixo pelo comentário de Louise, mas confesso que me
feriu, ao ponto de ter relegado para segundo plano a noite que
passámos em conjunto, como se a sua última frase tivesse tido o
condão de, em breves segundos, deitar por terra a construção de um
edifício que demorara anos a erguer.
Se
alguém podia compreender a minha instalação era precisamente
Louise, tal a identificação que sentíamos. Se ela não compreendia
a minha casa era porque também não me entendia como pessoa, uma
conclusão que me chocava. A exposição do meu vestuário não era
mais importante do que o convívio que mantivéramos e a intimidade
que criáramos, mas era uma expressão viva e profunda do que me ia
na alma. Se Louise achava que a minha casa era uma “loja de
pronto-a-vestir”, isso queria dizer que não alcançara
verdadeiramente o meu ser íntimo.
Depois
de Louise sair e se afastar, fiquei em atitude meditativa junto à
porta, como se precisasse de ter a certeza de que ela dissera o que
eu realmente ouvira. Olhei para a minha roupa dependurada nas paredes
e senti-me só, outra vez. Senti-me como se Louise nunca tivesse
chegado a entrar na minha vida.
Quando,
semanas depois, já a viver noutro local, voltei à editora para
entregar mais uma tradução, deparei-me com uma Louise igual ao
primeiro dia em que eu a conhecera. Recebeu-me delicadamente, mas com
um ar sempre formal e distante. Percebi que a noite vertiginosa que
passáramos em minha casa tinha sido rasurada da sua agenda pessoal.
Ou que a ponte que atravessava a sua memória nada tinha a ver com a
esplendorosa viagem que fizéramos. Louise esfriou como eu também
esfriara. Assim se confirmava, mais uma vez, a nossa plena
identificação.
Pouco
antes do fim do mês, conforme planeara desde o início, telefonei ao
senhorio a perguntar-lhe se podia esperar duas ou três semanas pelo
pagamento da próxima renda. Pelo tom da sua voz, reparei que não
ficou satisfeito com a proposta, mas ante a firmeza e convicção das
minhas palavras, acabou por ceder, embora não se esquecendo de
sublinhar que aquele seria o primeiro e último adiamento.
A
minha intenção era abandonar a casa de um momento para o outro,
evitando toda e qualquer prestação de contas. Para não chamar a
atenção dos vizinhos, o mais seguro seria recorrer a uma carrinha
na qual pudesse meter todos os meus haveres de uma assentada.
Lembrei-me
de Mervin. A sua banda costumava pedir uma furgoneta emprestada para
o transporte dos instrumentos. Decidi que lhe telefonaria, a saber se
podia dar-me um jeito. Aproveitaria a ocasião para lhe explicar os
motivos pelos quais havia deixado de viver com ele. Dir-lhe-ia que as
traduções me exigiam total recolhimento e concentração, um
ambiente que não podia encontrar em sua casa.
Todas
as vezes que eu mudava de residência confrontava-me com a
expectativa de saber o que me aconteceria a seguir, de que forma
arranjaria dinheiro para o primeiro mês da próxima renda.
Mas
eu confiava no meu instinto, acima de tudo. Três dias antes de
terminar o prazo que combinara com o senhorio, numa das minhas raras
saídas, conheci um artista de rua, de nome Andy, que ganhava a vida
vendendo as paisagens que pintava.
Parei
uns minutos a observar a sua técnica, a forma como misturava as
cores e sombreava, recorrendo ao jogo dos claros e escuros sobre as
telas. Para descontrair da tensão provocada pela presença constante
de pessoas que se detinham a olhar o seu trabalho, Andy fazia
intervalos, durante os quais se sentava, a pouco mais de um metro de
distância do cavalete, em posição de ioga, a reflectir durante
longos minutos, tornando difícil de perceber a quem passava se
estava ali para vender quadros ou para se entregar à meditação.
Foi
num dos instantes em que acordava para a realidade que reparou em
mim. Pusemo-nos a conversar como velhos amigos. Dispensei-me de dizer
que não podia comprar nenhum dos seus quadros porque Andy não
parecia estar ali com esse objectivo. O que pretendia era viver,
pintar, sentir pessoas à sua volta e relaxar com o ioga. Se calhasse
alguém querer comprar-lhe alguma tela, melhor.
Já
reparaste que o céu vai cair? exclamou a certa altura, ante o
meu ar perplexo. E explicava a sua teoria com base no argumento de
que a cidade estava demasiado habitada, que não tinha para onde
crescer e que, por isso, o céu se desmoronaria mais tarde ou mais
cedo. O céu vai cair..., vai tudo cair...
Capítulo IV
1
Naquela
noite, fui a casa de Andy, para ver alguns dos quadros que não
costumava expor, entre os quais se destacava um que mostrava o céu a
desabar sobre a cidade e que ele considerava a prova mais do que
científica do futuro que nos esperava. Fiquei a saber que Andy era
proprietário de uma carrinha, que lhe servia de hotel sempre que
passava temporadas mostrando a sua arte a gentes de outras
localidades. Combinámos que ele me ajudaria na mudança, logo que eu
arranjasse casa. Não precisaria de me voltar a preocupar com Mervin
e com a sua furgoneta.
Desencantei
um pequeno apartamento no rés-do-chão de um prédio com razoável
aparência, paguei a primeira renda com parte do dinheiro que já
tinha recebido da editora e telefonei a Andy.
Poucos minutos antes da meia-noite, hora em que terminava o prazo para eu pagar o segundo mês de renda da casa que me preparava para abandonar, Andy encostou a traseira da sua carrinha à porta da frente, enchemo-la com tudo o que me pertencia, sem nos darmos sequer ao trabalho de apagar a luz. Partímos na maior das calmas, deslizando em passeio dominical nocturno pelas ruas da cidade.
Achas
que estamos a ser seguidos? perguntava Andy, indiferente ao meu
nervosismo. O segredo da vida está em nunca acelerar
acrescentava, sem esperar pela minha resposta. Quanto mais
devagar andarmos, mais tempo temos pela frente!
Cada
vez que falava, desacelerava, como se a lentidão da marcha o
ajudasse a articular os raciocínios, enquanto eu nos imaginava
perseguidos por uma dúzia de carros da polícia com sirenes a tocar
por toda a cidade. Daqui a pouco, estaremos sãos e salvos!
dizia, mastigando as palavras nos semáforos vermelhos, onde só lhe
faltava fechar os olhos e pôr-se a meditar...
Notei
que Andy ficou impressionado com a diferença entre a minha nova casa
e a anterior. Ajudou-me a carregar as coisas para dentro, sem fazer
comentários. Mas eu via nos seus olhos que ele percebia os motivos
pelos quais eu tivera que trocar uma excelente residência por uma
quase espelunca.
O
meu novo espaço era exíguo e mal iluminado. Contudo, eu gostava
dele. Porque era tudo o que eu podia possuir naquele momento. Não
via grande diferença entre ser dono do mundo inteiro ou ter apenas
aquele cubículo. A dimensão das coisas era relativa. De que me
valeria ter quilómetros de casa à minha disposição se eu não
teria hipóteses de os ocupar na totalidade? Antes trinta ou quarenta
metros quadrados que eu pudesse considerar realmente meus.
Agradeci
a ajuda de Andy e instalei-me. No dia seguinte, atirei-me a traduzir
com unhas e dentes.
Quando
dei por mim, já quase escurecia lá fora. Levantei-me da cadeira e
dispensei, finalmente, alguma atenção à minha nova casa.
Estava
sem ideias. O apartamento que me calhara encontrar era maior do que
um quarto, mas bastante menor do que os anteriores sítios onde eu
residira. Pensando bem, tive que concluir que não tinha qualquer
característica capaz de estimular a veia criativa das minhas
instalações. Mas procurei não desanimar.
Pus
o colchão num dos cantos do quarto de dormir, a mobília de troncos
na sala ao lado e o banco de jardim a separá-la da cozinha. O resto
havia de ser pensado com tempo.
Apeteceu-me
sair de casa e conhecer a zona onde se situava o meu novo
apartamento. Eu descurava sempre as zonas. Só me interessava o
buraco onde me metia. Porém, a toca que eu acabara de alugar era tão
irrelevante, tão encoberta, tão sumida no contexto dos prédios
vizinhos, que eu ainda não adquirira a sensação de ter
desaparecido da zona antiga e ter começado a existir na nova.
De
uma maneira ou de outra, nos quarteirões envolventes, toda a gente
se conhecia, se avistava na ida para o emprego ou no regresso,
acenava de longe, memorizava feições e formas de andar, conversava
nos cafés, mas ninguém ainda se dera conta de que havia uma nova
alma – a minha – nas cercanias. Por maior que fosse a indiferença
que caracterizava as relações entre as pessoas que residiam nas
cidades, havia sempre um brilho ténue, um esgar de sorriso, um olhar
cúmplice que as levava a sentirem-se parte de um todo. Eu ainda não
constava desse todo, dessa mole de consciências vagas que sofriam e
se alegravam nas horas palpáveis de cada dia. Se o céu viesse a
cair, como anunciava o quadro de Andy, eu tombaria sem saber onde,
feito cadáver anónimo desprovido de memória e de nome, ao lado de
outros milhares de mortos que não teriam dificuldades em
reconhecer-se e amar-se no último fôlego das suas sepulturas.
2
Do
lado oposto da rua, exactamente diante do prédio onde eu habitava,
havia um bar que, à primeira vista, me pareceu convidativo. Ficava
entalado entre os escritórios de algumas empresas, o que me levou a
concluir que a clientela poderia ter algum interesse. Calculei que
aparecessem por lá alguns funcionários qualificados, quadros
experientes e atarefados, que fariam pequenos intervalos para
refrescarem a garganta com uma cerveja ou subirem o nível de
adrenalina com um café. Conheceriam os empregados, com quem
trocariam piadas e conversas superficiais, o que não me obrigaria a
grandes esforços mentais.
Se
alguma coisa não me apetecia, naquele momento, era pensar. Depois de
horas a traduzir, eu ainda não conseguira assentar completamente,
olhar em volta, rever-me no movimento do qual fazia parte e ficar em
paz com a minha consciência.
Atravessei
a rua, na expectativa de que o bar não me desiludisse. A minha
curiosidade cresceu quando verifiquei que não tinha a porta aberta
para o exterior. A privacidade dos clientes estava garantida. Eu
queria que soubessem da minha existência, mas não me agradava
pensar que se poriam a falar de mim pelos pretextos mais inúteis ou
ridículos.
Empurrei
a porta, entrei e fui sentar-me numa das mesas do fundo, para ter uma
visão ampla sobre o estabelecimento e sobre as pessoas que entrassem
ou saíssem.
O
interior era intencionalmente mal iluminado, vendo-se ao balcão
apenas um empregado, que me olhou com cara de quem se perguntava se
já me teria visto antes.
Pedi
uma cerveja, o que raramente fazia, e não lhe devolvi o olhar,
negando-lhe a oportunidade de qualquer aproximação. Desagradava-me
pensar que alguém pudesse adivinhar que eu tinha o corpo assim ou
assado ou que acabara de fixar residência na zona. Só pretendia que
me identificassem sem me fazerem perguntas sobre a forma como ocupava
o meu tempo, quem era, de onde vinha.
Se
o céu viesse a cair, eu sucumbiria, ao menos, junto a um moribundo
qualquer. Sempre que admitia a hipótese de perecer numa catástrofe,
a primeira coisa em que pensava era no corpo que estaria mais perto
de mim e que partilharia comigo os últimos instantes de vida. Talvez
nessa altura, nesses derradeiros momentos de sabedoria, encontrasse a
pessoa perfeita para me acompanhar no caminho para uma outra
existência. Não interessava que fosse cadáver. Interessava era que
fosse o cadáver perfeito. De qualquer forma, éramos todos e sempre
cadáveres. A pior forma de o ser, porém, era alimentar expectativas
acerca do nosso próprio esqueleto.
Para
além de mim, não se via ninguém no bar. Faltava pouco para as nove
da noite.
Demorei-me
cerca de meia hora, saboreando a bebida, olhando a sombra dos móveis
no chão, observando as paredes, com a mente absorta, distante, oca.
O ambiente vinha perfeitamente de encontro ao vazio que me preenchia.
A cerveja ajudava-me a não reflectir.
Tinha
ido ao bar com a intenção de fazer parte de algum movimento, de
testemunhar agitação, de sentir as coisas arder à minha volta, mas
acabara por estar só, na companhia de um empregado a quem não dera
quaisquer hipóteses de permuta de fluídos. Mesmo assim, achei que
ocupara bem o meu tempo. A cidade também era aquela escuridão mansa
que se infiltrava pelas frestas das paredes e avançava sobre o vazio
dos olhos, mantendo as almas ocultas.
3
Quando
voltei para casa, ao meter a chave à porta, tive a sensação de ver
algo escrito na parede, uma frase recente, duas frases, em forma de
pergunta, surgidas sem explicação, fora do contexto, coladas à
pintura como um novo projecto plástico do qual o antigo não podia
prescindir.
A
toda a largura por baixo da única janela do apartamento, podia
ler-se com todas as letras: “O que vai ser de ti? Não vês o que
estás a fazer?”
Assim
mesmo, em cor azul, uma mensagem com destinatário certo, dirigida a
ninguém, talvez um vizinho.
Forcei-me
a ler segunda vez, para me situar ante as perguntas, tentando
perceber se me eram dirigidas, ou não. Na primeira hipótese, quem
as poderia ter escrito? Com que fim? Em que momento? Na segunda,
porque teriam sido escritas na parede do meu apartamento e não
noutro? E porquê rente à janela?
Procurei
identificar um ou outro pormenor da caligrafia que acabasse por
denunciar o autor das frases. Não valia a pena. As maiúsculas
disfarçavam qualquer particularidade, tal como a distância da
parede a que o spray fora utilizado.
O
que me custava a perceber era a intenção, o objectivo, de quem se
dispusera a escrever semelhante mensagem no muro da casa que eu
acabara de alugar.
Fosse
qual fosse a pretensão, o certo é que fora capaz de me abalar, de
me paralisar, de me arrepiar.
Convenci-me
de que havia alguém que estava a querer dizer-me alguma coisa. Mesmo
que a mensagem não me fosse dirigida, eu poderia sempre concluir
que, de uma forma indirecta, ela teria a finalidade de me atingir.
Até poderia ter o único intuito de me fazer pensar. De contrário,
não teria sido escrita na minha parede, mas sim noutra, irrelevante,
num pedaço de labirinto com bruma e correntes de murmúrios que se
perdem no eco das cidades.
Senti
que devia fazer algo, que devia reagir. Se me deixasse dominar por
aquelas duas perguntas na parede – “O que vai ser de ti? Não vês
o que estás a fazer?” – uma espécie de gritos sussurrados,
corria o risco de perder o pé, de deixar de controlar o que se
passava em meu redor.
Pensei
em grades de leite. Caixas plásticas onde se guardam garrafas de
leite branco e fresco. De um momento para o outro. Sem mais nem
menos. Acontecia-me, por vezes, deixar-me levar assim por uma ideia
que nada tinha a ver com o que me preocupava. Grades de leite
empilhadas à porta de uma pequena mercearia que avistara há alguns
momentos atrás, quando atravessava a rua que separava o bar da minha
casa. Na altura, não liguei, mas depois de me libertar da pressão
exercida sobre mim pelas duas perguntas escritas na parede foi para
as grades de leite que dirigi a minha atenção. Como se, de alguma
forma, pudesse utilizá-las em minha defesa, servindo-me de barricada
contra alguma coisa.
Saí
de casa para confirmar se realmente vira as grades ou se apenas
tivera uma alucinação. Lá estavam elas, de facto, umas sobre as
outras, sem ordem, abandonadas, tristes, como pessoas sem abrigo
dormindo ao relento, a fim de, no outro dia, serem organizadas,
expostas, enchidas outra vez, com leite novo e branco como a neve em
pleno Verão.
Achei
um desperdício. Estruturas plásticas, em bom estado de manutenção,
para ali sem eira nem beira, ao sabor da humidade nocturna.
Não
me aproximei, para que o meu interesse não desse nas vistas, para
evitar que algum vizinho me detectasse ou percebesse a intenção que
acabara de me assaltar.
Voltei
para casa, com a certeza de que me apoderaria das grades ainda
naquela noite. Instalá-las-ia no meu novo apartamento, com perícia
e método, criando pequenas subdivisões dentro das divisões, o que
permitiria proporcionar a ilusão de que tinha um espaço maior do
que realmente tinha e, acima de tudo, de que passaria a estar sob
protecção das eventuais consequências das frases escritas na
parede exterior da minha casa.
Faria
tudo para que não me apanhassem no furto, mas se tivesse o azar de
me descobrirem não viria daí grande mal ao mundo. Não era provável
que a polícia me causasse problemas só por causa do roubo de umas
grades abandonadas à frente de uma mercearia. Além do mais, aquele
seria um roubo mais estimulante do que o do banco de jardim, porque
não continha tanto risco e, na prática, permitir-me-ia tirar dele
bastantes mais dividendos na divisão dos espaços.
4
Aconteceu
como eu previra. Trouxe para o apartamento todas as grades que
entendi, enquanto as ia colocando à toa umas sobre as outras, até
decidir como as disporia, exactamente, e como as rentabilizaria, em
função do espaço apertado de que dispunha.
Se
a casa era mal iluminada, ainda ficou pior, com aquela muralha de
grades empilhadas, fazendo lembrar arranha-céus junto às nuvens.
Para
começar, criei uma subdivisão entre a cozinha e o quarto principal.
Fiquei com bastante menos espaço para circular, mas considerei que
aquela “parede” se justificava perfeitamente. Assim, ao menos, os
cheiros da cozinha não me incomodariam tanto. É verdade que as
grades não os bloqueavam de todo, mas ficava estabelecida uma
fronteira psicológica.
Depois,
defini um corredor directo da porta de entrada para o quarto de
dormir, montando uma segunda “parede” de caixas, que me permitiu
isolar o espaço que serviria de sala de estar. Esta segunda
divisória escureceu ainda mais o apartamento, porque passou a vedar
a claridade da única janela que existia no compartimento, mas eu já
tinha decidido habituar-me à ideia de que a luz natural era um dos
aspectos fracos da minha nova casa.
No
quarto de dormir, onde voltei a colocar o banco de jardim, encostei
as restantes grades a uma das paredes, junto à mesa onde fazia as
traduções.
Com
esta solução, quem entrasse no meu apartamento daria de caras com
uma quantidade de grades, mas que não obstruíam totalmente o
espaço, porque as aberturas destinadas às garrafas permitiam uma
visão para além da divisória, que, ainda por cima, poderia ser
alterada a qualquer momento, por ser composta de peças soltas.
No
dia seguinte, achei que as “paredes” de caixas eram demasiado
elevadas e reduzi-as em altura, o que me levou a aumentar a estante
no quarto de dormir. Eu mudava as coisas de um sítio para o outro.
Nunca me desfazia delas, por pouco valiosas que fossem.
Por
entre as grades, não tive outro remédio senão instalar as diversas
lâmpadas coloridas que guardara do tempo em que vivera com Mervin,
compensando deste modo a falta de claridade que havia na casa. Com
frequência, acendia-as durante o dia, a fim de transmitir alguma
animação à tacanhez dos espaços subdivididos. A luz de tons
variados dava-me a impressão de eu não estar só no meu
apartamento. As cores das lâmpadas representavam almas que me
acompanhavam no silêncio das horas invisíveis.
No
intervalo entre as traduções, deslocava-me à sala de estar,
sentava-me e punha-me a olhar através das brechas das caixas. Era o
que se chamava olhar para coisa nenhuma, mas eu sentia que aquela era
uma das minhas formas preferidas de ver o Mundo. Vê-lo, sem correr o
risco de me verem.
Com
o tempo, esqueci-me das frases escritas na parede exterior da casa.
Mas, um dia, voltei a reparar nelas. E voltei a afligir-me por ainda
não as ter compreendido nem descodificado.
Com
receio de que me pudesse acontecer alguma coisa, aumentei, de novo, a
altura das divisórias de caixas, desta feita optando mesmo por
fazê-las chegar ao tecto do apartamento.
Sabia
que o sentido das palavras, por mais enigmática que fosse a sua
origem, encontraria sempre maneira de atravessar as caixas, que eram
abertas (um aspecto essencial para evitar o completo bloqueio do
espaço), mas também não me restavam dúvidas de que a altura das
“paredes” contribuiria de forma notória para esmorecer os
ímpetos de quem estivesse, porventura, a tentar fazer-me chegar
algum recado.
Pensei
na hipótese de apagar as frases, sobrepondo-lhes uma camada de tinta
semelhante à da parede, mas tive a certeza de que o meu esforço
seria em vão. Porque as palavras haveriam sempre de romper qualquer
tentativa de as suprimirem.
5
Entreguei
à editora mais uma tradução, pedindo desculpa pelo atraso. Reparei
que Louise não estava de serviço. Abstive-me de fazer perguntas.
Pagaram-me vários trabalhos em dívida, com a promessa de que dentro
de pouco tempo me dariam outros.
Em
vez de seguir o caminho de casa, dei uma volta pela cidade, passando,
sem me deter, por alguns dos sítios onde vivera nos últimos tempos.
Abrandava o carro diante das casas, olhava e continuava em frente,
com receio de que alguém me reconhecesse e encostasse à parede para
ajustar contas. Eu não devia quantias de monta, mas carregava o seu
peso na minha consciência. Um peso que me assustava e contribuía de
forma decisiva para que eu não conseguisse esquecer o último ano da
minha vida, ao contrário do que acontecera às restantes páginas do
meu passado.
Mervin
estaria no direito de considerar que eu estava em dívida com ele,
ainda que eu tivesse desaparecido em consequência do ressentimento
provocado pela indiferença da sua banda para comigo. De qualquer
modo, Mervin poderia sempre alegar que estava na hora de lhe pagar o
aluguer do quarto que eu ocupara durante vários meses. A casa onde
residíramos juntos fora convertida numa lavandaria, conforme
verifiquei ao passar pela zona. Enquanto abrandava o carro, imaginei
o meu antigo espaço com montes de roupa de todas as cores e
tamanhos, envoltos em cheiros nauseabundos que se elevavam no ar,
acabando por misturar-se com o odor das peças já tratadas e
perfumadas; imaginei Mervin e a sua banda sugados pela vertigem das
máquinas de lavar, que rodavam endoidecidas de urgência, deixando
apenas adivinhar as cores difusas das roupas espremidas e retorcidas
no movimento frenético que lhes devorara os corpos.
Tomei
cuidados especiais quando passei na casa onde a invasão de formigas
provocara uma inundação no andar de baixo, não fosse dar-se o caso
de o vizinho ainda me esperar de caçadeira em punho. Acelerei o
carro logo que me apercebi de que tudo estava exactamente como antes,
sinal de que me poderiam facilmente identificar como ainda fazendo
parte das imediações.
Não
me atrevi a passar na casa onde convivera com Louise e a cujo dono
ficara a dever duas semanas de renda. A zona era tão calma que a
todo o momento qualquer pessoa daria pela minha presença.
Bati
à porta de Ralph, mas ninguém respondeu. Nem sombra dele, nem da
prima. Não me admiraria se viesse a descobrir que Ralph desaparecera
de vez para um país estrangeiro, a pretexto de uma futilidade
qualquer. Ou que tivesse acabado por se juntar a Mervin e à sua
banda.
Às
três da tarde, acabei no bar junto ao meu novo apartamento. Àquela
hora, seria mais intenso o efeito da frase escrita na parede da minha
casa. Por isso, seria preferível contornar a situação, optando
pela privacidade do bar, onde a minha protecção estaria mais do que
assegurada. Aquele era um instante do dia em que a barricada de
caixas erguida em minha casa não seria suficiente para travar o que
quer que fosse.
O
empregado do estabelecimento não era o mesmo de antes e havia dois
homens sentados em mesas diferentes. Depois, entrou um casal, que
veio sentar-se perto do meu canto. Ela, jovem e descontraída; ele,
inibido e acanhado. Ninguém me ligou. Nem com um olhar de viés. Era
como se toda a gente que entrava naquele bar tivesse a vida
resolvida, indo ali parar com o mero intuito de recuperar da canseira
quotidiana. Este pormenor, contudo, indicava que a minha existência
não causava estranheza junto de quem me rodeava, fazendo-me concluir
que eu deixara de estar só.
A
dado momento, tive a sensação de conhecer aquele estabelecimento
desde há longos anos, embora não me restassem dúvidas de que só
lá entrara duas vezes. O casal que se sentara perto de mim falava
italiano. Não percebia a maior parte das coisas que diziam. Quando
cheguei a casa, pareceu-me que as caixas de leite haviam sido
deslocadas ligeiramente de sítio.
6
Louise
telefonou-me a propósito de uma nova tradução que a editora
pretendia entregar-me. Disse-lhe que passaria por lá no dia
seguinte.
Está
tudo bem? perguntou.
Respondi-lhe
que sim, sem acrescentar muito mais. Mas ela não desligou o telefone
e sugeriu que nos encontrássemos. Prometi que tomaríamos café
quando me deslocasse à editora.
Gostas
da tua nova casa? voltou ela à carga.
Não
é má... respondi, ainda que de forma pouco convicta.
Passa-se
alguma coisa?
Não.
Pareces
outra pessoa...
É
impressão tua.
Estou
ansiosa por te ver.
Já
não tenho a loja de pronto-a-vestir...
Não
me digas!
Acabei
por concluir que não era uma solução por aí além.
O
meu comentário chateou-te?
Fez-me
reflectir...
Então,
vemo-nos amanhã.
Antes
de desligar, ainda lhe disse que não tinha a certeza de ir à
editora no dia seguinte, mas que, na pior das hipóteses, fá-lo-ia
no prazo máximo de dois dias.
De
repente, lembrei-me que saíra do bar sem pagar a conta. O que iriam
pensar de mim? Já teriam avisado a polícia? Ou esperariam que eu lá
regressasse para resolver o problema? Para evitar equívocos, voltei
ao estabelecimento a correr, pedindo desculpa pelo meu lapso e
liquidando a dívida.
Na
altura em que me preparava para sair, esbarrei em Cat! E ela em mim.
Ficámos a olhar-nos por uns segundos, como se tivéssemos dúvidas
sobre a identidade da pessoa que tínhamos pela frente. Por fim, ela
disse, com um sorriso arejado, que eu não teria sido capaz de lhe
adivinhar há algum tempo atrás: O que é feito de ti?!
Continuei
sem palavras. Cat era a última alma que eu esperaria encontrar
naquele momento. Bem disposta, confiante, parecia outra. Apesar de
termos vivido na mesma casa durante uns meses, só agora me apercebia
do seu poder de sedução e encantamento.
Cat
disse-me que se separara de Mervin e que vivia na rua ali mesmo ao
lado.
A
sua casa nada tinha a ver com a que eu conhecera em outros tempos. A
organização era completa, a limpeza saltava à vista. O seu bom
gosto era indiscutível, embora eu fosse incapaz de viver num espaço
como o dela.
Sentámo-nos,
lado a lado, no sofá, e enquanto ela ia dizendo que os filhos
estavam com uma amiga, reparei que dobrou os joelhos na minha
direcção, deixando ver a sombra que se aninhava no ângulo apertado
e fundo das suas pernas esguias.
Senti-me
estremecer, mas desviei os olhos com prontidão, não fosse ela levar
a mal a minha ousadia.
Sabes
quem me telefonou há dias? perguntou, como se procurasse
ajudar-me, desviando a minha atenção das suas pernas.
Não
imagino repliquei, sem grande interesse.
Mervin!
exclamou, com ar visivelmente satisfeito.
E
perante o meu silêncio, acrescentou que notara nele o desejo de
voltar para junto da família. Mas Cat não estava disposta a isso.
Agora
que já me recompus do desgosto, não quero voltar a passar pelo
mesmo. E praticamente sem se deter para respirar, adiantou:
Mervin perguntou por ti... Posso dar-lhe a tua morada?
Fui
para casa a pensar nos motivos que levariam Mervin a querer saber de
mim. Se um dia me procurasse e pedisse dinheiro, não me atreveria a
negar-lho. Mas eu não tinha a certeza de que ele o faria. Sempre me
admirara que durante o tempo em que eu vivera em sua casa o nosso
relacionamento nunca tivesse ultrapassado a barreira da formalidade,
embora eu lhe tivesse aberto a porta do meu quarto por diversas
vezes. Enquanto mantivera o casamento com Cat, ele não dava a ideia
de estar preso a ela. Até acabou por trocá-la pela música.
Contudo, também nunca se aproximou da minha vida, apesar das longas
conversas que mantínhamos. Ao saber que perguntara por mim, esqueci
a mágoa que me fizera apressar a saída da sua casa. Naquela altura,
já não sabia quem me atraía mais, se Cat, se Mervin!
7
Mirei
e remirei as minhas grades de leite, na tentativa de perceber se
mantinham, ou não, as suas posições iniciais. A certa altura,
parecera-me que não. Mas podia ter sido impressão minha.
Observei
as divisórias de diversos ângulos, de lado, de frente, de trás, da
cozinha, a partir do assento de uma das poltronas da sala (que
proporcionava uma perspectiva diferente em altura), da porta do
quarto de dormir, e convenci-me mesmo de que algo se tinha passado
durante a minha ausência. Mas não sabia explicar o quê. A
sobreposição das caixas não estava tão perfeita como eu a
deixara. Dava a ideia de que um tufão entrara na casa através das
frestas das janelas, agitando o amontoado de peças e fazendo-as
deslocar ligeiramente dos sítios milimétricos em que eu as pusera.
Contudo, a cidade não fora varrida por qualquer tempestade. Por
isso, era difícil perceber o que tinha acontecido.
Depois
de ter andado cerca de uma hora às voltas com o enigma, decidi
cortar o mal pela raiz. Se calhar, nada sucedera e as caixas apenas
tinham cedido em consequência da posição instável em que eu as
deixara. Uma divisória afastada da parede, constituída por dezenas
de unidades sobrepostas sem qualquer elo, corria sempre o risco de
algum desequilíbrio.
Pareceu-me
mais seguro mudar tudo. E fi-lo. Desmontei as divisórias por
completo e reconstituí-as junto às paredes. Deste modo, ficava com
menos divisões na casa, mas o espaço ganhava luminosidade natural
(permitindo-me poupar electricidade), enquanto, por outro lado, as
caixas ganhavam solidez e consistência.
A
partir de então, eu tentaria perceber se voltariam a ser objecto de
alguma oscilação. Se tal se verificasse, eu teria que descobrir a
causa da ocorrência e agir em conformidade.
Pensei
em fantasmas e almas penadas. Contudo, acabei por afastar essa
hipótese. Já vivera em diversas casas e nunca me apoquentara com
coisas do género. Não era agora que me deixaria soçobrar. Eu tinha
feito o essencial, mudar as grades de sítio, restando-me esperar
pelo que sucederia nas próximas horas ou dias.
Sempre
que entrava e saía de casa, passei a dar especial atenção ao
posicionamento das grades. Antes de sair, observava-as com minúcia,
uma por uma, conferia medidas e distâncias, verificava a sua
estabilidade. Logo que entrava, repetia a operação, passo por
passo, a fim de detectar qualquer eventual alteração. Cheguei mesmo
a comprar uma fita métrica, para garantir a fiabilidade dos meus
métodos de verificação.
Depois,
quando circulava pela casa, quando ia ali ou acolá, à cozinha
buscar um copo ou à casa de banho lavar as mãos, se acontecia tocar
de raspão ou tropeçar em alguma das caixas, voltava atrás e
corrigia imediatamente a sua posição, não fosse dar-se o caso de
horas mais tarde me esquecer do sucedido e achar que algum poder
estranho causara o desvio.
Todas
estas precauções fizeram com que a minha casa se tornasse uma
espécie de museu, onde me era absolutamente proibido tocar fosse no
que fosse. E cheguei mesmo ao ponto de quase andar em pontas de pés,
quando me deslocava de um sítio para outro, para que nada bulisse no
apartamento.
No
dia em que me bateram à porta e fui abrir, despreocupadamente,
pensando tratar-se do carteiro ou de alguém a deixar um recado do
senhorio, a primeira reacção que tive, ao ver Mervin sorridente a
olhar-me, foi barrar-lhe a entrada.
Fiz-te
alguma coisa? perguntou estupefacto. Queres que volte noutra
altura?
Senti
revolta contra o meu próprio gesto. Porque me agradava ter Mervin
dentro de casa (vi na sua cara que não me falaria em dinheiro), mas,
por instinto, reagira exactamente ao contrário do meu desejo.
Fiquei
sem saber o que lhe dizer. Gaguejei, recuei, pedi desculpa,
flanqueei-lhe a passagem, enquanto me punha a rodar à sua volta,
nervosamente, para impedir que tocasse em alguma coisa, como se a sua
entrada pudesse vir a provocar alguma catástrofe nos meus redutos.
Se
queres, saio já disse, visivelmente perplexo, porventura
recordando-se dos tempos em que ele e a banda se instalavam e
ensaiavam sem escrúpulos no quarto que eu ocupara em sua casa.
Não,
não... retorqui. É que têm acontecido umas coisas. Mas
fica à vontade, não ligues, hoje acordei assim...
8
Mervin
esboçava um qualquer movimento, por mais elementar que fosse, e eu
quase saltava da minha cadeira, perguntando se desejava alguma coisa,
se estava bem, se era servido de uma bebida.
O
meu comportamento, porém, contradizia de tal forma as minhas
palavras que, a dado momento, Mervin terá mesmo pensado que eu teria
outras intenções.
Falámos
da banda, das últimas novidades e concertos, dos seus projectos, de
Cat, de viagens. E, enquanto falávamos, Mervin ia-se tornando mais
afoito. Para o deter, e com a intenção de evitar que a sua euforia
abalasse a minha estrutura de grades, não tive outro remédio senão
sentar-me a seu lado.
Pareces
dez anos mais novo disse eu, sabendo que esta afirmação
reforçava a sua confiança, mas, ao mesmo tempo, servia para lhe dar
a perceber que não precisaria de fazer avanços precipitados porque
eu estava disponível para alinhar com o que ele quisesse.
Mervin
acalmou, à espera que eu tomasse nas mãos as rédeas do nosso
reencontro.
Para
desviar a sua atenção, e para afastar completamente o risco de o
ver aflorar a questão financeira pendente entre nós, adiantei-me
enquanto ia a tempo de a resposta pender a meu favor:
Não
achas que é altura de fazermos contas?
A
sua reacção foi mais forte do que eu previa: Nem penses numa
coisa dessas! Vim visitar-te porque tinha saudades tuas. E
esclareceu que todas as nossas contas tinham ficado integralmente
liquidadas com a minha cedência do quarto para os ensaios da banda.
A
sua resposta engenhosa foi um alívio. Era menos uma dívida com que
tinha de me preocupar.
A
partir daí, só tive que gerir com habilidade os desmedidos impulsos
de Mervin. Porque, depois de considerar saldadas as nossas contas, o
antigo marido de Cat passou a agir como se eu estivesse de novo em
dívida com ele...
Pôs-me
o braço esquerdo por cima do ombro e desatou a falar-me ao ouvido,
sem que eu tivesse motivos óbvios para o repelir.
Mal
percebia o sentido das palavras que ele fazia ecoar na concha da
minha orelha e enquanto não encontrava pretexto para tomar uma
atitude firme sobre a sua aproximação procurava a todo o custo
lembrar-me de uma desculpa eficaz que me obrigasse a mudar de sítio.
Vou
à casa de banho disse eu, a certa altura.
Vê
lá se não te demoras! foi a sua resposta.
Deixei-o
esperar bastante tempo, mas, de repente, precipitei-me para fora dos
lavabos, quando me lembrei que estava a dar-lhe uma oportunidade para
andar pela minha casa com o maior dos à vontades, pondo em risco a
estabilidade das minhas caixas. Ao abrir a porta, confirmou-se o que
eu temia: Mervin tinha-se posto a sacudir a minha instalação, a fim
de verificar a sua segurança.
Não
mexas aí! foi tudo o que consegui dizer.
Estava
só a ver se isto não me caía em cima justificou-se,
surpreendido com a minha atitude.
Não
consegui esconder a decepção que senti ao aperceber-me da
inutilidade dos esforços que despendera para controlar a
estabilidade da minha estrutura de grades. Em poucos minutos, Mervin
fizera ruir todos os meus cálculos e medições, como se os seus
abanões equivalessem a um abalo sísmico com efeitos devastadores
numa quantidade de prédios, restando-me fazer o levantamento dos
estragos com paciência e método.
Não
estive com meias medidas. Disse-lhe que sentia uma forte
indisposição, que tinha comido qualquer coisa estragada, que estava
com vómitos e prometi que lhe telefonaria no dia seguinte para
combinarmos novo encontro.
Mervin
ofereceu-se para me levar ao hospital, se eu assim o desejasse, mas a
minha resposta foi de tal forma desmotivadora, que não se atreveu a
insistir.
Já
perto da saída, ainda perguntou se dissera ou fizera alguma coisa
que me ofendesse, mas o sorriso com que lhe respondi foi mais do que
suficiente para o tranquilizar.
Até
amanhã..., vê lá se melhoras, até amanhã... repetia ele, de
forma convincente, acenando até desaparecer.
Capítulo
V
1
A
forma hábil como Mervin saldou as nossas contas, fazendo-me logo
depois sentir em nova situação de débito, deu cabo de todo e
qualquer sentimento que eu pudesse nutrir por ele. Preferia manter o
meu relacionamento com Cat, cuja transparência e ligeireza poderiam
mesmo ser afectadas por um eventual envolvimento com Mervin.
O
melhor era não voltar a vê-lo. Nem que tivesse de mudar de casa
outra vez. Até porque, mais dia menos dia, perdê-lo-ia de vista,
quando ele sumisse de novo com a banda. Se me deixasse levar pelo seu
magnetismo, acabaria por ser apenas mais uma vítima de mais uma
relação acidental. Eu tolerava flirts, optando por eles,
até, muitas vezes, em detrimento de outras situações mais
comprometedoras, mas não admitia ser vítima de quem quer que fosse.
Já me bastara o que tivera de gerir com o desaparecimento da prima
de Ralph. A fim de não perder o comando das situações e não me
ferir, eu chegava a escolher de forma cirúrgica os momentos mais
auspiciosos para terminar as relações em que me envolvia. Fazia-o
abruptamente, sem pensar nas consequências. Depois, ressentia-me.
Não por muito tempo, mas ressentia-me. Remoía o assunto durante
umas horas e esquecia.
Telefonei
a Andy, perguntando se tinha conhecimento de alguma casa para alugar.
Ele disse-me que acabara de saber de um apartamento vago há uma
quantidade de tempo no mesmo andar do prédio em que vivia uma amiga
sua. Pelos vistos, até constava que o apartamento não tinha dono.
Descobri
que realmente assim era. O espaço estava abandonado há cerca de
dois anos, sem que jamais alguém o tivesse reclamado. A amiga de
Andy achou que não haveria qualquer problema se eu me mudasse para
lá. Já outras pessoas o haviam feito.
O
apartamento ficava no quinto andar de um edifício visivelmente
degradado, cujo elevador não funcionava há mais de dois meses. Mas
não estive com grandes hesitações sobre o que fazer.
Enchi
a carrinha de Andy com os meus haveres e preparei-me para ocupar uma
nova casa, sem prestar contas a quem quer que fosse.
Quando
cheguei ao apartamento, contudo, dei de caras com um conhecido da
amiga de Andy, que acabara de se instalar há menos de meia hora!
Pensei que as minhas hipóteses tinham caído por terra. A amiga de
Andy, porém, apresentou-nos – o intruso chamava-se Fred – disse
que não havia problema em nos instalarmos os dois, que até era
melhor para ambos, e despediu-se, de forma apressada, com cara de
quem não desejava envolver-se muito mais num imbróglio que não lhe
dizia respeito.
Notei
que Fred não ficou radiante com a ideia de partilhar a casa comigo,
mas ante a impossibilidade de se opor, acabou por se conformar.
Também
não tive outra solução. Não me apetecia voltar para o buraco de
onde saíra, nem que fosse para evitar de vez as frases escritas na
parede que, no fundo, me abalavam mais do que eu pretendia fazer
crer. Havia coisas que eu não conseguia contornar. Alguns cartazes
publicitários, por vezes, pareciam ser-me dirigidos. Eu sabia que
não o eram, mas não conseguia deixar de pensar o contrário.
Fred
só pensava em cozinhar e comer, embora a sua aparência física não
desse quaisquer indicações nesse sentido. Falou-me das
especialidades que confeccionava e garantiu-me que não passaríamos
fome.
Na
sua óptica, todo o poder estava na culinária. Porque era através
da alimentação que se controlava a sobrevivência e a saúde das
pessoas.
É
o poder das entranhas! afirmava, passeando pela casa. É nas
entranhas que se decide tudo. E quem cozinha assume esse poder
absoluto. Até o sexo depende do que se come... Haverá maior poder
do que o da culinária?...
Fred
explicava a vida inteira com base na alimentação: bom e mau humor,
cólicas, sabores, digestões, estados de alma, dúvidas,
realizações, apetites, atracções! A seu ver, não era por acaso
que havia o hábito de convidar para jantar pessoas com quem se
pretendia estreitar relações, de negócios ou de outro cariz. Era
sempre a sedução que estava em causa. A sedução plena só
acontecia à mesa das refeições.
A
sua filosofia parecia-me pertinente, mas eu nunca dera especial
atenção à culinária. Qualquer coisa me servia para encher o
estômago, desde que eu tivesse um local para viver. Enquanto, para
Fred, todo o poder estava na alimentação e em quem a confeccionava,
para mim, todo o poder estava na casa, que servia de abrigo e
protegia do mundo à volta. Era na casa que tudo se resguardava e
resolvia, que se descansava e convivia sem restrições.
2
O
apartamento que Fred e eu passámos a ocupar estava em condições
deploráveis. As paredes precisavam de pintura, o autoclismo não
funcionava, a fechadura da porta de entrada desaparecera, o chão não
era varrido há meses...
Perante
o que se me deparava, afligia-me pensar na disposição dos meus
objectos e peças de mobília num espaço que não era meu nem de
Fred, mas que, ao mesmo tempo, pertencia aos dois. Eu recebera o
convite da amiga de Andy, ao passo que ele simplesmente aparecera e
se instalara, embora o tivesse ocupado antes de mim.
Era
a primeira vez que me deparava com uma tal situação. Por se tratar
de uma casa que não era de ninguém, eu não possuía quaisquer
direitos sobre ela e, além de tudo, tinha que partilhá-la com outra
pessoa que me era completamente desconhecida.
Tal
como a culinária não tinha qualquer significado para mim (eu mal
sabia fritar um ovo), duvidava que Fred aceitasse a minha forma de
ser e de estar numa casa. Se calhar, ridicularizaria a minha mobília
de troncos, defendendo que era preferível sentarmo-nos no chão.
Pelo que me era dado ver, ele não trouxera quaisquer móveis ou
apetrechos. Tinha deixado cair uma mochila no soalho junto à porta
da cozinha e nada mais.
Arrastei
o meu colchão para um dos quartos de dormir, depois de perguntar a
Fred se não se opunha a que eu o fizesse, e preocupei-me em guardar
no roupeiro todas as minhas coisas, de forma a prevenir qualquer
desaparecimento menos oportuno.
Por
volta do meio-dia, fui dar uma volta, para arejar as ideias.
Deambulei pelas ruas, com rumo incerto, olhando para todo o lado sem
ver coisa nenhuma. Agora que eu tinha uma ocupação profissional,
poderia amealhar algum dinheiro, uma vez que nos próximos tempos nem
precisaria de pagar renda de casa. A não ser que, por qualquer
motivo, me desentendesse com Fred, vendo-me na obrigação de
procurar outro sítio para viver. O que pressentia, contudo, era que
seria mais fácil Fred se desentender comigo, até porque eu já
passara pela experiência de viver em casa de Mervin, demonstrando
capacidade de adaptação a várias situações e imprevistos. (Não
é qualquer pessoa que permite a invasão regular do seu espaço por
uma banda de música ensurdecedora).
Entrei
numa pastelaria, sentei-me e pedi um café. Por mais que procurasse
serenar interiormente, não conseguia deixar de pensar no meu novo
companheiro de casa. Alto, quase esquelético, de feições
angulosas, Fred era o tipo de pessoa que não parecia dar ouvidos a
quem quer que fosse. A avaliar pelo modo como falava da culinária,
sobre a qual tinha uma opinião sem dúvida sólida e difícil de
contrariar, eu tinha a nítida primeira impressão de que não
deveria aproximar-me dele. Nunca se sabia até onde ia a sua sede de
poder. Fred podia muito bem tentar controlar a vida das pessoas
através dos pratos que confeccionava. Não faltava quem o tentasse
fazer, recorrendo a penas de galinha, cabelos de pessoas e patas de
animais para condimentar refeições. Naquele momento, eu não podia
excluir qualquer cenário.
Estava
nestas reflexões quando se aproximou de mim um vagabundo
desgrenhado, de olhos quase a sair das órbitas, com ar de quem não
sabia o que era água há muitos meses e que me disse de forma
peremptória:
Toda
a gente tem o destino traçado! Mas, no seu caso, há um problema...
Não
soube que responder. Notando a minha vontade de sair dali quanto
antes, o homem implorou que o ouvisse.
Não
quero dinheiro, esteja à vontade. Deixe-me só tentar perceber o que
está errado no seu destino. Simples curiosidade científica. E
após uma ligeira hesitação, perguntou se eu me importava de olhar
para cima, enquanto ele se agachava na minha frente, quase de
joelhos, como se procurasse descobrir alguma sombra malévola na zona
baixa dos meus globos oculares.
Não
se aproxime de quem lhe quer mal acrescentou, com voz tensa.
Ele não vai ficar de braços cruzados. Acautele-se!
Ao
fim de dez minutos, após diversas ameaças que se encadeavam umas
nas outras, consentiu que eu fosse à minha vida, deixando por
esclarecer o enigma do destino que me calhara. Deu-me um papel
amarrotado com o seu endereço e pediu que o visitasse para futuras
averiguações.
3
Quando
voltei ao apartamento, verifiquei que a cozinha estava cheia de lixo:
cascas de ovo e alfaces pelo chão, restos de cebola, pedaços de
batata, cabeças de alho, uma garrafa de óleo vazia...
Mas
antes que eu pudesse fazer qualquer comentário, Fred convidou-me
prontamente para almoçar: Estou a preparar uma refeição
deliciosa! Fazes-me companhia?
Com
a imagem do vagabundo ainda implantada fortemente na memória, menti,
dizendo que tinha acabado de comer. Eu olhava para Fred e só via o
miserável que me interpelara o destino de olhos esbugalhados para o
vazio. Estranhamente, via-o com uma nitidez quase luminosa, enquanto
mantinha os olhos em Fred. Depois, vi Cat e vi Mervin. Vi tudo isto
em Fred. Só que Mervin não era Mervin, exactamente, mas Cat com a
cor de pele de Mervin. Intrigava-me que tais visões acontecessem
enquanto olhava para Fred. Não muito tempo a seguir, ao fim de
breves segundos, Cat tornou-se a protagonista de sucessivas e
repentinas mudanças corporais, um fenómeno que eu não conseguia
controlar nem explicar. Tinha os olhos fixos em Fred e, ao mesmo
tempo, via Cat à minha frente, sobrepondo-se ao vagabundo e a
Mervin, à pele de Mervin, o que a tornava particularmente esbelta e
apetecível, em contraste com o Fred pegajoso e sebento que eu tinha
diante dos olhos.
Ao
fim de pouco tempo na casa, apercebi-me de que Fred só possuía um
par de calças de ganga, que usava todos os dias e com as quais até
dormia durante a noite. Uma vez, vi-o sair do lavatóriuo no momento
em que se preparava para fechar a braguilha e notei que nem usava
cuecas.
Certa
manhã, veio acordar-me à cama e, no momento em que me voltei e abri
os olhos, achei que estava demasiado próximo de mim, dando-me conta
do cheiro nauseabundo que exalava.
Sabes
que horas são? dizia, como se tivesse a obrigação de zelar
pelas minhas horas ou pela minha vida.
Eu
sentia que o seu gesto não era inocente e que se aproveitava do
facto de eu estar a dormir para se impor junto de mim. Fred era um
sedutor. Porque se entregava às causas com alma. Fazia-o com tanta
convicção que acabava por votar todo o resto ao abandono. Se não
fosse descuidado em termos de higiene, reconheço que até poderia
nutrir por ele algum sentimento. Fred era o homem mais atraente que
eu conhecera nos últimos tempos. Se calhar, haveria quem apreciasse
a sua forma desleixada de ser, que tinha uma óbvia componente de
paixão. Quem se deixasse cair nas malhas de Fred deparar-se-ia
sempre com extrema dificuldade em sair delas. Dava-me a impressão de
Fred ter consciência disso, exactamente, pela maneira como se
mantinha perto da minha cama, pouco faltando para se sentar na beira
do colchão.
Não
te levantas? insistia ele, parecendo disposto a puxar-me a roupa
da cama para os pés.
Confiei,
porém, em que não ousaria chegar a tal ponto. Ou limitei-me a
esperar para ver até onde iria a sua coragem.
Vendo
que eu não estava na disposição de reagir às suas palavras,
manifestando clara intenção de continuar entre os lençóis, Fred
acabou por se afastar e sair do meu quarto. Mas a recordação do
incidente nunca me abandonou.
Quando
voltei a ficar só, fiz nova ligação mental a Cat, então de forma
intencional e controlada, já sem imagens sobrepostas. Decidi que lhe
telefonaria naquele dia, sem falta. Se não pudesse sair, iria vê-la
de novo a sua casa. A forma como estivera comigo não deixava margem
para dúvidas quando ao prazer que a minha presença lhe
proporcionava. Depois das experiências com a prima de Ralph, com
Louise, com Mervin, restava-me a vaga esperança de estabelecer com
Cat um relacionamento mais frutuoso. Cat era mãe de três filhos,
mas ostentava um ar juvenil, que lhe dava uma graça singular,
sobretudo depois de ter passado a viver sem Mervin.
4
A
primeira vez que apanhei Fred fora de casa, enchi-me de coragem e
dispus a minha mobília de troncos na sala de estar. Não teria sido
capaz de o fazer na presença dele. Só para não enfrentar a
expressão com que reagiria à minha atitude. Quando chegasse, havia
de dizer o que entendesse, mas nessa altura eu já sentiria confiança
suficiente para o enfrentar. Uma ou duas horas era o tempo que eu
precisava para ganhar segurança.
Dei
uma vista de olhos na arrecadação e deparei-me com dezenas de
garrafas de vidro, abandonadas, se calhar, desde o tempo do anterior
inquilino. Algumas eram vulgares, mas outras tinham formas bizarras,
podendo mesmo vir a despertar o interesse de algum coleccionador.
Acocorei-me
à entrada da arrecadação e pus-me a tirar as garrafas, uma por
uma, com jeito e atenção, não fosse dar-se o caso de alguma se me
escaqueirar nas mãos. Muni-me de um pano de pó e fui-as limpando,
esfregando, lavando, alinhando em cima do mesão da cozinha.
Não
me restavam quaisquer dúvidas de que aquelas garrafas dariam um ar
invejável à sala de estar, dispostas no chão aparentemente ao
acaso. Duas ou três encostadas num canto, uma tombada junto ao
cadeirão duplo, mais três ou quatro aqui e ali, como se alguém que
em tempos imemoriais morara naquele apartamento tivesse o hábito de
as ir deixando cair à medida que as esvaziava.
Ao
fim de meia-hora, a sala estava inundada de garrafas de vidro
transparente e opaco, umas brancas, outras verdes e castanhas. Apenas
uma tinha a cor azul. Pu-la no meio da sala. Imponente e solitária,
com um gargalo esguio e longo. Parecia uma escultura, um troféu
raro.
Eu
não tinha o hábito de ingerir bebidas de qualquer espécie e,
embora não conhecesse os hábitos de Fred, nunca o vira beber fosse
o que fosse. Por isso mesmo, todas aquelas garrafas expostas na sala
de estar faziam passar uma mensagem que nada tinha a ver com a minha
vida quotidiana, o que me dava a sensação de aquela ser mais uma
muralha que me rodeava. Uma muralha com vários flancos
transparentes, alguns deles deixando-se atravessar pela luz que
coloria as sombras estendidas no soalho à medida que a claridade da
janela ia obedecendo aos humores do sol. Uma muralha frágil, que
alguém erguera nos fundos da arrecadação e que eu me encarregara
de desconstruir, peça a peça, ao longo de todo o espaço da sala de
estar.
Na
totalidade, contei mais de oitenta garrafas de variados géneros e
feitios. As vulgares passavam perfeitamente despercebidas entre as
que tinham formas exóticas. A sala de estar ficou com um ar
completamente novo. Nem nos espaços mais vanguardistas tinha alguma
vez presenciado instalação semelhante.
Só
depois de ter disposto todas as garrafas me apercebi de que não dera
uma varridela no chão imundo. Para fazer uma limpeza decente àquela
divisão da casa, agora, teria que tirar todas as garrafas dos seus
sítios, uma ideia que não me agradava, por mais que a sujeira me
arreliasse. É que, para além de todo o trabalho que tivera a
colocá-las nos pontos que me pareciam mais adequados, tendo em conta
a forma e a cor de cada uma, ser-me-ia impossível voltar a dispô-las
da mesma forma, caso as retirasse para varrer a sala. Ao mesmo tempo,
porém, considerava inadmissível não fazer desaparecer toda aquela
porcaria.
Só
me restou a hipótese de varrer o lixo e os rolos de pó, circundando
as garrafas com a vassoura, cuidadosamente, para que nenhuma deixasse
de estar no seu local exacto. Provavelmente, demorei mais do que
demoraria se tivesse desviado todas as garrafas para um canto e
voltado a colocá-las nas posições iniciais, podendo mesmo ter
descoberto ângulos mais favoráveis para algumas delas, mas senti um
gáudio enorme por ter varrido a sala sem pôr em causa a disposição
que eu decidira atribuir a todas e cada uma das garrafas.
Pela
primeira vez, desde que vivia por minha conta, convenci-me de ter
concebido uma instalação que não corria o risco de ser comparada
com nenhuma outra coisa. Agora, só faltava esperar pela chegada de
Fred e testemunhar a sua reacção.
5
Fred
chegou por volta das duas da tarde. Entrou cheio de pressa, mal me
olhou e não fez qualquer comentário sobre o que eu tinha feito na
sala. Duvidei mesmo que tivesse reparado no destino que eu dera às
garrafas e na limpeza que diligentemente efectuara. Fechou-se no seu
quarto por mais de meia hora, deixando-me às aranhas. Podia não ter
gostado da minha obra, podia não ter gostado de ver a mobília de
troncos num espaço comum aos dois, mas não lhe custava nada ter
agradecido o trabalho que eu tivera para limpar e tornar apresentável
a principal divisão do apartamento.
Contudo,
a ausência de reacção por parte de Fred devolvera-me alguma
serenidade. Ao menos, não perdera a cabeça, nem desatara aos
pontapés contra a minha instalação. A fúria que eu lhe adivinhava
no fundo dos olhos e que pressentia ser capaz de explodir nele, a
qualquer momento, pela razão mais oculta ou indizível, teimava em
não aparecer.
Fechei
o livro que tinha nas mãos e telefonei a Cat. Fez-me bem ouvir a sua
voz do outro lado da linha. Dirigiu-me várias expressões de afecto
e não hesitou em combinar encontro comigo no bar que ficava junto ao
meu anterior apartamento.
Fui
ao quarto mudar de roupa e quando me preparava para sair, já no
patamar da escada comum, dei de caras com a amiga de Andy, que me fez
uma festa e quis dar uma vista de olhos na casa.
Fiquei
a saber que se ausentaria por vários dias, na companhia de Andy, a
fim de o apoiar numa exposição de quadros em outra cidade.
A
amiga de Andy ficou emocionada com a minha instalação de garrafas e
elogiou, especialmente, a mobília de troncos. Falava alto, apontava
pormenores, ria e destacava esta ou aquela solução. A garrafa azul,
exposta no meio da sala, deixou-a fulminada.
Um
verdadeiro ex-libris! disse, ante o pasmo com que eu assistia aos
seus comentários, mostrando-se tão sensibilizada com o conjunto da
minha obra que referiu por várias vezes a intenção de sugerir a
Andy que a pintasse.
Uma
natureza morta originalíssima sublinhou.
Intrigou-me
o facto de Fred continuar fechado no quarto, apesar da efusão
provocada pelo surgimento da amiga de Andy, mas não perdi tempo a
pensar no assunto, até porque imaginava que Cat já devia estar
preocupada com a minha demora. Todavia, eu tinha que dar atenção à
amiga de Andy, que era a primeira pessoa a apoiar entusiasticamente
uma das minhas instalações caseiras, ainda por cima querendo que um
amigo a eternizasse num óleo, o que não deixava de me embevecer.
Quando
cheguei ao bar, Cat já se preparava para sair, farta de estar à
minha espera. Depois de lhe pedir desculpa, fomos dar uma volta pelas
redondezas. Descobrímos um recanto ajardinado, onde nos sentámos a
conversar. A certa altura, reparei que Cat tinha a perna encostada à
minha, mas concluí que não passaria de um acaso. Durante todo o
tempo que vivi com ela nunca lhe detectei qualquer ousadia e mesmo no
nosso mais recente encontro notei que se preocupara em desviar a
minha atenção das suas pernas. É verdade que, agora, estava
afectivamente livre de Mervin, mas nem assim, pus a hipótese de
haver qualquer segunda intenção no seu gesto.
Até
quando Cat se pôs a massajar um dos meus joelhos, tive dúvidas
sobre o que realmente pretenderia. Acariciava-me a rótula sob as
calças com a sua mão macia e continuava a falar de tudo o que lhe
vinha à cabeça, sem nunca me fixar nos olhos.
Depois,
sem me dar tempo de reflectir sobre o que estava a acontecer,
levantou-se de rompante, disse que estava na hora de voltar para
casa, deu-me um beijo nos cabelos e desatou a correr sem mais
explicações. Deixei-me ficar onde estava, no meio do turbilhão de
ideias que subitamente tomou conta de mim, vendo-a liquefazer-se por
entre a multidão que àquela hora saía dos empregos.
6
Ainda
sob o efeito da vertigem que Cat me provocara, entrei em casa e não
quis acreditar no que os meus olhos viam: todas as garrafas tinham
desaparecido da sala! Depois, verifiquei que a mobília de troncos
estava empilhada no meu quarto, junto ao tubo de escape e ao banco de
jardim, que eu deixara a servir de cabide à beira da cama.
Fiquei
sem sangue. Ou como se o sangue me tivesse paralisado nas veias.
Senti que me tinham arrancado a alma, desfazendo-a em pedaços.
Dificilmente alguma coisa me poderia ter provocado tamanho
constrangimento. Por qualquer motivo, naquele preciso momento,
vieram-me à ideia as crianças que passam fome em África. Não me
parecia haver muita lógica na associação, mas foi essa a visão
que passou no meu cérebro.
Sentei-me
na cama, tentando organizar as ideias. Devia ir ao quarto de Fred
verificar se ele lá estava e pedir-lhe contas pelo que sucedera ou
devia esperar que a situação se esclarecesse?
Quando
me magoavam, quando eram injustos comigo, quando me faziam alguma
coisa pelas costas, eu desnorteava. Por saber que assim era, e por
não conhecer Fred muito bem, tentei manter-me onde estava, tentei
apaziguar-me interiormente, tentei controlar os nervos que me faziam
estremecer dos pés à cabeça. Apesar de todos os esforços que
fazia, porém, eu não tinha a mínima dúvida de que só conseguiria
domar a besta que se libertava dentro de mim por um prazo de poucos
minutos.
Era
o que faltava terem mexido nas minhas coisas sem me pedirem
autorização. Era verdade que eu também não pedira a Fred
autorização para o que fizera, mas ele até me devia agradecer o
favor de eu ter dado cabo de toda a porcaria que enchia a sala.
Eu
não acreditava que alguém tivesse entrado no apartamento e feito
desaparecer as garrafas, poupando a mobília de troncos. Aquilo só
podia ser obra de Fred. Por alguma razão, ao entrar e dar de caras
com a minha instalação, ele quase correra a encerrar-se no seu
quarto. Devia ter-se posto a remoer sobre a situação e esperado que
eu saísse para, então, dar azo ao espírito vingativo que se
escondia dentro dele.
Não
me aguentei mais e dirigi-me ao quarto de Fred. Bati, não obtive
resposta. Dei a volta ao puxador, verifiquei que estava trancado.
Desferi dois socos na porta, dizendo:
Abre!
Sei que estás aí dentro.
O
silêncio manteve-se. Fiz contas à possibilidade de entrar por
arrombamento. Mas não tinha a certeza de ser capaz de rebentar a
porta com os pés ou com a ajuda dos ombros. Mesmo que o viesse a
conseguir, teria sempre que pensar na reacção de Fred. Eu já o
imaginava a enfrentar-me de pistola em punho! E ao pensar nessa
eventualidade, devo reconhecer que me inibi. Lembrei-me da taxista
que viera atrás de mim com uma barra de ferro erguida acima da
cabeça. Retrocedi. Era melhor não exagerar, para evitar um banho de
sangue. Vendo bem as coisas, só tinham desaparecido as garrafas, que
não eram minhas. O resto apenas havia sido mudado de sítio.
Qualquer pessoa com dois dedos de testa reconheceria que a
ocorrência, ainda que abusiva, não era dramática.
Estava
eu entregue a estes raciocínios no meio da sala de estar, quando vi
a sombra de Fred surgir na porta de entrada. Esforcei-me por não o
olhar, até perceber o que ele faria no instante logo a seguir. Mas,
pelo silêncio que se instalou (deixei de ouvir os seus passos),
percebi que não tinha passado da porta e que, por sua vez, ele
também estaria a tentar prever a minha reacção.
Enrijeci
os músculos, tentando precaver-me contra qualquer eventualidade, e
decidi encará-lo, pedindo explicações sobre o sucedido.
7
Não
tive hipóteses. Fred foi o primeiro a falar, ordenando-me que eu
abandonasse a casa, imediatamente!
A
sua atitude surpreendeu-me, pela maneira fria e definitiva como se
exprimiu. Nunca o tinha visto tão transtornado. Nunca vira alguém,
de resto, tão fora de si, absolutamente imóvel e de olhar fixo no
vazio.
Todos
os argumentos que eu tencionava usar contra ele atravessaram-se-me
subitamente na garganta de tal forma que não fui capaz de responder
com a prontidão que me parecia adequada.
Ao
fim de poucos segundos, consegui respirar e repliquei que ele não me
podia expulsar de uma casa que não lhe pertencia. As minhas palavras
soaram-me a pouco. Mas, tendo em conta a postura do meu antagonista,
senti que dificilmente poderia fazer melhor. Já não havia sido mau
ter-me atrevido a dizer alguma coisa...
Fred
era, obviamente, um atirador implacável, que disparava antes de
saber que tipo de inimigo tinha pela frente, obrigando a vítima a
reagir em posição de inferioridade, depois de ter a primeira bala
metida no corpo. Disparava por fases, com método. Fazia-o sem
pensar. Era uma atitude natural nele.
Procedera
de igual forma quando me conhecera e só falara de cozinha e da
importância decisiva da alimentação no quotidiano.
Apesar
de tudo, eu não estava à espera de um comportamento tão extremado.
Uma coisa era disparar com teorias sobre culinária, outra coisa
desatar aos tiros sobre uma pessoa, obrigando-a a sair de casa, só
por causa de uma exposição de garrafas.
Durante
todos aqueles dias, partilhara a minha privacidade com um psicopata.
Considerei-me feliz por não ter levado muito tempo a percebê-lo. De
outra forma, se tivesse sido eu a explodir em primeiro lugar, a
situação podia ter tido consequências desastrosas.
Sem
responder ao argumento de que não tinha legitimidade para me
expulsar, Fred deu-me vinte minutos para sair e esvaziar a casa de
todos os meus haveres.
Podes
dizer-me o que fizeste às garrafas? perguntei com a voz mais
normal possível, embora não tencionasse levá-las comigo, nem que
fosse para nunca mais me recordar da cena que vivia naquele momento.
Tens
vinte minutos para te pôr a andar insistiu ele.
Pensei
pedir ajuda à amiga de Andy, mas logo a seguir lembrei-me de que
tinha ido de viagem.
Sem
perder tempo com mais falatório, e porque era evidente que Fred não
estava disposto a discutir coisa alguma, nem direitos, nem
legitimidade, nem motivos razoáveis de qualquer espécie, avancei
para o meu quarto e pus-me a guardar tudo o que tinha. Só o colchão
deu-me uma trabalheira. Descer todas aqueles escadas, carregando uma
quantidade de tralha, que eu não tinha coragem de deixar atrás,
ainda por cima sabendo que Fred estava no meio da sala a contar os
minutos, deixou-me à beira do colapso. Na última volta, já mal
conseguia respirar.
Enquanto
descia e subia escadas, com montes de coisas às costas, nas mãos,
nos braços e sob os sovacos, eu só pensava na forma como me
vingaria do que Fred acabara de fazer. Nem que tivesse que contratar
dois ou três atiradores profissionais, ele havia de pagar pelo seu
acto. Jurei mil vezes que não lhe daria o prazer de ter a última
palavra.
Quando
trazia o banco de jardim às costas, na curva entre o terceiro e o
segundo andar, já sem forças, escorreguei e caí, estatelando-me a
todo o comprimento e rebolando por uma quantidade de degraus. Nos
milésimos de segundo que durou a queda, pensei que a minha hora
tinha chegado, que partiria as pernas e a coluna, que não escaparia
com vida. Ao fim e ao cabo, só esfolei um tornozelo. A minha revolta
era tal que pouco ou nada senti.
Levantei-me,
tentei meter o banco no carro, mas não tive hipóteses. Para
conseguir fechar as portas do veículo, vi-me na necessidade de o
esvaziar de muita coisa que acabei por amontoar no tejadilho, onde
também prendi o banco de jardim. O meu carro parecia uma torre presa
por fios, uma instalação ambulante que eu me encarregaria de exibir
pela cidade como uma atracção de circo.
Arranquei,
fazendo contas ao preço que me poderia custar a contratação dos
indivíduos que limpariam o sebo a Fred. Os riscos que eu corria eram
mínimos. As autoridades não se preocupariam com a morte de um
paranóico, quando dessem com o seu cadáver cortado em postas (era
preciso poupar nos gastos que o encobrimento do crime implicaria) no
meio de uma casa que nem dono tinha.
Pensava
na vingança e em muito mais, repensava e voltava a pensar na forma
de transformar a vida de Fred num inferno, mas sabia, à partida,
que, dentro de pouco tempo, esqueceria tudo. Esqueceria o seu rosto,
o seu fedor, as suas palavras cortantes, os seus olhos fundos sem
cor. Era mais fácil esquecer, por mais que me apetecesse voltar
atrás para o ajuste de contas. Eu esqueceria. Mas nem por isso
deixaria de me deleitar com a minuciosa elaboração do plano que
visava eliminá-lo do meu passado.
Capítulo
VI
1
Naquela
noite, dormi no carro. Não quis pedir ajuda. Para mendigar abrigo a
alguém conhecido, teria que contar o que acontecera com Fred e eu
não estava em condições de o recordar nem sequer aos meus botões.
Para escapar aos problemas, via-me na necessidade de escapar às
pessoas. Eu não tinha dúvidas de que, para manter a sanidade, devia
ficar só, durante as próximas horas.
Deitei-me
sob os cobertores no banco de trás, confundindo-me com o emaranhado
de roupas e tralhas que se amontoavam por todos os recantos do
veículo até ao tejadilho e deixando apenas as narinas de fora para
respirar. Se alguém passasse e olhasse não adivinharia a existência
de um corpo vivo aninhado dentro de toda aquela chaparia retorcida de
coisas a transbordar. Caí no sono em poucos segundos. Dormi sem dar
acordo de mim.
Ao
despertar, na manhã seguinte, o meu corpo era uma confusão de
tornozelos doridos e esfolados, pelo esforço que fizera na mudança
precipitada de casa e pela queda que dera nas escadas. Cada movimento
que fazia rasgava-me a carne, os músculos, os tendões, repuxando os
nervos, os filamentos, as artérias. Cheguei a pensar que não
conseguiria sair do carro pelos meus próprios meios. Ao fim de algum
tempo, contudo, aqueci e ganhei coragem para me levantar.
Saí
do automóvel em câmara lenta, aos tropeções. Pus-me a ginasticar
os músculos mesmo ali no parque de estacionamento onde passara a
noite. Apesar da claridade que me estonteava, a primeira coisa em que
pensei foi na tradução que tinha entre mãos e à qual não chegara
a adiantar uma linha durante o tempo em que vivera com Fred. A
editora ainda não me havia pago todos os trabalhos, mas se eu queria
vir a receber os restantes e manter a fonte de receita nos próximos
meses não podia continuar na senda do desleixo em que caíra.
Para
ter condições de voltar a traduzir, tinha que arranjar nova casa
sem perda de tempo. Sentei-me ao volante, fundindo os gemidos das
minhas articulações com as do assento. Ajeitei o cabelo no espelho
retrovisor e passei pelo rosto uma ponta de lençol que puxei do
banco de trás.
Quando me preparava para sair dali, uma mulher que aparentava estar na casa dos trinta veio pedir-me uma informação, acabando por me perguntar se eu não me importaria de a levar a casa de uns amigos que viviam a pouco mais de um quilómetro de distância. Como não tinha que fazer, acedi.
À chegada, convidou-me a entrar com ela. Entrei e só voltei a sair de lá ao cabo de semanas. Instalei-me, sem ter recebido convite. Como num abrigo em que há lugar para todos.
Passei
a partilhar a casa com sete, oito, nove pessoas, nunca soube quantas,
em rigor, Bill, Nat, Sus, Ric, Jul..., entre outros nomes que
entravam e saíam, constantemente, sem se saber ao que vinham ou ao
que iam.
Durante
todo o dia e toda a noite, ninguém fazia nada de concreto na grande
casa que me coubera em sorte. Alguns jogavam cartas, outros dormiam.
Por vezes, sabia-se que este ou aquele se deslocava a algum sítio,
mas não passava disso. Também acontecia Nat ou Ric trazerem um
amigo ou alguém bater à porta de surpresa, juntando-se aos que já
lá estavam.
As
minhas grades de leite, mobília de troncos, banco de jardim e tubo
de escape foram distribuídos por diversos quartos.
À
semelhança de toda a gente que ali vivia, eu não tinha poiso certo.
Dormia onde calhava. No sofá, no chão, detrás de uma porta!
Raramente conseguia lugar num dos diversos colchões, onde havia
sempre duas ou três pessoas a dormir. Naquela casa, dormia-se mais
do que eu alguma vez tinha visto.
Inicialmente,
quando permiti que as minhas coisas fossem colocadas ao deus dará
pela casa, ainda pensei que, posteriormente, poderia vir a
organizá-las, dar-lhes um sentido, dispô-las conforme um plano
estético coerente. Mas isso nunca veio a acontecer. Porque ao cabo
de poucos dias, já os meus objectos tinham sido absorvidos pelo
movimento das pessoas, pelas sombras das roupas dependuradas nas
portas, pelo ruído das vozes. O meu sofá de troncos e o banco de
jardim passaram a servir de cama, os cadeirões e o tubo de escape de
cabides, as grades de assentos e contentores de lixo.
2
Com
o tempo, fui percebendo que as instalações de objectos com que eu
tinha por hábito preocupar-me em cada casa onde vivia eram
perfeitamente dispensáveis. Na residência que me acolhera
substituía-as, agora, a presença constante de pessoas. Lis, Frank,
Nat, Mila, Ric, Jul e um sem número de outra gente eram mais do que
suficientes para dar sentido a todos os cantos da casa.
Na
prática, dava a impressão de os objectos terem virado pessoas. Ou
de terem sido as pessoas a virar objectos. Qualquer uma das
explicações me contentava. Eu não tinha que mexer um dedo para
tornar a casa aprazível. Sentava-me contra uma parede e observava os
corpos deitados nas camas, as sombras das cabeças no soalho, as mãos
nos seus movimentos pausados durante os jogos de cartas, os zunidos
das conversas, os gritos e as gargalhadas. Achava que jamais
conseguiria instalações tão equilibradas e originais, por mais que
me esforçasse com tubos de escape, mobílias de tronco, lâmpadas,
grades de leite.
Toda
a gente que passava por aquela casa contribuía para dar corpo a uma
série de construções que eu ia edificando, mentalmente, conforme
os dias, conforme a disposição. Não precisava de corrigir o que
quer que fosse. As coisas (que eram pessoas) ou as pessoas (que eram
coisas) faziam-no de sua livre vontade. Num certo sentido, agiam por
mim. Eram autómatos, que eu comandava a meu belo prazer.
Ia-as
conhecendo pelos grupos que formavam, pelos olhares que trocavam,
pelos silêncios que faziam, pelos acasalamentos com que se
entretinham, pelas horas que dormiam. Ocupava boa parte do meu tempo
a tentar perceber os seus pensamentos. Não tinha a certeza de
atingir os objectivos que me traçara, mas não desistia. Mesmo que
falhasse, nunca se provaria o desajuste entre a realidade que eu
fabricava e as inconsciências de quem vagueava pela casa.
Observar
os que dormiam era o que mais me aliciava. Durante o sono, ninguém
tinha possibilidades de saber o que lhe passava pela própria cabeça.
Deste modo, eu acabava por me deparar com um nível de dificuldade
semelhante ao da pessoa que jazia imóvel na cama. Não era por me
encontrar num plano exterior à sua intimidade que eu sabia menos do
que ela.
Se,
ao acordar, lhe perguntasse o que estivera a pensar momentos antes,
enquanto dormia, o mais certo era não saber responder.
Foi
nesta base que passei a assentar o meu conhecimento dos outros. A
diferença entre o sono e a vigília, muitas vezes, não era assim
tão significativa. Enquanto andavam de um lado para o outro e
falavam, as pessoas também nem sempre tinham uma ideia exacta do que
se passava dentro delas e à sua volta. Deste modo, eu tinha a
oportunidade de pensar por elas, penetrando as suas mentes ocas,
infiltrando-me como uma fresta de ar nas suas intimidades. No fundo,
quem vivia naquela casa retratava bastante bem as massas sem destino
que vagueavam pela cidade.
À
medida que eu ia entrando nas almas dos fantasmas que me rodeavam ia
abrindo caminho, ao mesmo tempo, para um mundo muito mais vasto, o
grande cérebro informe e inútil das multidões não pensantes, que
se limitavam a trabalhar, destruindo-se hora após hora, de forma
irreversível e sistemática. Percebi que a minha interferência nas
suas vidas podia até tornar-se decisiva porque eu só queria
construir alguma coisa com os seus passos errantes, os seus espíritos
sem bússola. Uma simples instalação ambulante, concebida por mim
com base nos seus percursos, seria muito mais divertida e criativa do
que as existências degradantes que levavam.
Além
de construir as minhas novas instalações a partir dos movimentos e
conversas dos vagabundos que tinha dentro de casa, havia uma
quantidade de outras estruturas que eu erigia na intimidade de cada
um, e que mudava conforme os dias e as horas. Assim, eu trabalhava
aos mais variados níveis, envolvendo-me num processo sem limites,
até porque, depois, me resumia a multiplicá-lo pelos milhões de
corpos que enchiam as ruas.
Com
o tempo, fui-me apercebendo de que o grau mais sofisticado e criativo
de cada pessoa que me estava próxima (e que era semelhante ao de
qualquer cidadão do planeta) acontecia durante o sono, quando nada
tinha coerência, quando as coisas se decompunham para dar origem a
outros planos e caminhos, quando a lucidez ultrapassava todas as
barreiras. Era como se o céu desabasse sobre a cidade, segundo
previra Andy. Um cataclismo de emoções e ideias embrenhadas em
teias sem princípio nem fim. Por mais que se procurasse, por mais
que se investigasse, nunca se atingia a linha do início terminal.
Durante o tempo de vigília, cada um apenas dava continuidade ao que
lhe acontecera durante o sono.
3
Ric
era quem assumia a responsabilidade pela residência quando se
tratava de prestar contas ao senhorio. Todos os fins do mês, falava
com os que se dava melhor e juntava dinheiro para pagar a renda.
Nessa altura, havia quem desaparecesse por vários dias, sem
pretextos nem explicações. Eu contribuía com pouco, mas sabia que
dar pouco sempre era melhor do que não dar coisa alguma. Tinha
praticamente abandonado as traduções, sem me dar ao trabalho de
telefonar ao editor a esclarecer o que quer que fosse. Ele também
perdera o meu rasto. Por isso, as minhas limitações de dinheiro
eram mais do que óbvias.
Se
os meus laços com o passado recente já eram frágeis, acabei por
apagar todos os trilhos que pudessem conduzir até à minha vida
actual. A própria Cat me perdera na névoa dos meses.
Quando
eu recuava mentalmente no tempo, as semanas pareciam anos e os anos
pareciam séculos.
Escapei
a tudo. Já nem precisava de conduzir a altas velocidades. Porque
deixara de haver quem estivesse disposto a perseguir-me, quem
soubesse onde me encontrar, quem quisesse saber de mim.
Até
os objectos aos quais tinha maior ligação se desvaneceram nos
corredores e quartos da casa onde certa noite cheguei a contar vinte
pessoas distribuídas pelos recantos mais imprevistos. Fui dar mesmo
com um barbudo estirado na banheira como se aquele fosse o berço
mais confortável que alguma vez tivera. Deixei-me ficar a olhá-lo,
de luz acesa, sem obter qualquer reacção. Podia acabar com ele em
poucos segundos que não correria riscos de me atribuírem a autoria
do crime, tal a abundância de potenciais assassinos que se
encontravam na residência. Bastava abafar-lhe o rosto com uma
almofada. Ou espetar-lhe uma faca no coração, abrindo as comportas
de um riacho sangrento sobre a superfície lisa e branca da banheira
que se tornaria, assim, a instalação mais radical que alguma vez eu
engendrara. Ou bastava estrangulá-lo com as minhas próprias mãos,
um cordel, um cinto, uma gravata. Se calhar, o repelente barbudo até
me agradeceria o gesto, se recuperasse a consciência a tempo de o
testemunhar antes de eu o ter consumado. Via-se que não passava de
um verme estendido numa concha. Tinha um sono calmo e tranquilo. Como
o de um réptil. Estava frio, conforme pude comprovar quando lhe
passei a mão pelo rosto numa carícia de mãe ou de pai que se
preocupa em verificar o estado do filho durante o sono. Ainda fui à
cozinha, onde quatro vultos jogavam às cartas entre nuvens de fumo
vulcânico, a ver se encontrava uma das facas de pão que costumava
estar junto ao lava-louça. Mas no instante em que precisava dela não
a encontrei. Parecia de propósito. Como se alguém, adivinhando a
minha intenção, a tivesse escondido a tempo de evitar o crime.
Perguntei se a tinham visto, mas ninguém se dignou responder-me.
Entrei
num dos quartos, em busca de um travesseiro com volume suficiente
para asfixiar o barbudo. Não tive sucesso. Desisti, só porque não
tive paciência para continuar à procura de qualquer outro objecto
capaz de me ajudar a concretizar a tarefa e também porque a minha
atenção depressa se dispersou...
Estavam
a chamar-me. Quem poderia ser? Se ninguém me ligara na cozinha
quando perguntara pela faca de pão, quem estaria agora a proferir o
meu nome? Algum sonâmbulo?
Saí
da casa de banho, deixando o barbudo enterrado na serena turbulência
dos sonhos e fui ver o que se passava.
Estou
aqui exclamou uma voz entorpecida de mulher, que não
identifiquei, de início. Avancei no escuro do quarto de onde me
pareciam vir as palavras e percebi que se tratava de Nat.
Estou
com medo continuou ela. Deitas-te aqui comigo? É só até
adormecer.
Fiz-lhe
a vontade. Nat era boa rapariga. Tinha os cabelos longos, escuros e
lisos sobre o colchão. Fi-la chegar para o meio da cama, obrigando-a
a empurrar os dois corpos que dormiam do outro lado, deitei-me e
pus-lhe o braço esquerdo sob o pescoço. Ela encostou-se a mim,
reclinando a cabeça no meu ombro.
Descansa
disse eu. Dorme..., ninguém te fará mal.
Enquanto
proferia estas palavras, em tom sibilante, notei que ela se afundava
numa descontração progressiva, vergando a alma ao destino dos
justos.
4
A
meio da noite, acordei em sobressalto. À minha direita, na cama,
encontrava-se o barbudo, o mesmo que eu pretendera matar quando dera
com ele a dormir na banheira.
O
energúmeno desatara a beijar-me enquanto dormia, ao mesmo tempo que
metia a mão entre as minhas pernas. A sua barba cheirava a fumo e
dejectos. Nat continuava deitada à minha esquerda, dormindo com a
cabeça voltada para o lado oposto àquele em que eu me encontrava.
Empurrei
o barbudo para fora do colchão, mas ele não desistiu. Mesmo no
soalho, estendia as mãos e agarrava-me com uma força superior a
todas as minhas capacidades de defesa.
Dei-lhe
socos e pontapés, levando-o a abrir os olhos para a realidade. Tive
um calafrio de medo, mas depressa percebi que o patife não tinha
consciência da forma como eu acabara de o agredir.
Amo-te!
dizia ele, babando-se e tentando voltar para cima do colchão,
enquanto eu fingia dormir. Não reparas nos meus sentimentos, não
me dás atenção, fazes de conta que não existo.
Conseguiu
deitar-se de novo a meu lado, abraçando-me, ofegando, encostando a
sua cara à minha. Virei-lhe as costas e tentei afastá-lo com
sacudidelas de rins.
Só
depois me dei conta de que, em vez de me ver livre dele, lhe
facilitara a tarefa porque lhe permiti que me prendesse pela cintura
e desatasse em movimentos lúbricos contra as minhas nádegas.
Quero
comer-te! repetia ele, de forma obsessiva. Quero...
engolindo sílabas, enrolando a língua de prazer, salivando como uma
besta.
Quanto
mais me tentava libertar, maior era a sua força de braços. Tentei
acordar Nat, para que me socorresse, mas ela não reagia. Parecia
morta, tal como os outros dois corpos estendidos do seu lado
esquerdo. Para aquela gente, dormir era morrer, esquecer, desaparecer
na distância que devorava tudo e todos.
A
dado momento, consegui desfechar uma cotovelada contra os queixos do
barbudo, que soltou um grito de dor e se viu obrigado a soltar-me.
Não
te excites tanto! exclamou. Dás cabo de mim.
Aproveitei
para me virar de barriga para cima, mas ele não perdeu tempo e
sentou-se sobre o meu peito, pondo-se a desabotoar a braguilha de
forma rápida e precipitada.
Faz-lhe
festas... dizia, completamente fora de si, sem consciência de
que o seu peso me esmagava ao ponto de quase me cortar a respiração.
Só
tive tempo de cuspir. Cuspi uma, duas, três vezes, chamei-lhe nomes.
Vi Fred na minha frente!, ainda que este nada se assemelhasse ao
energúmeno que se me sentara em cima. Odiei o barbudo tanto como
odiara Fred. Tinha que encontrar forças para não me deixar vencer.
Quando
o barbudo me segurou a cabeça com as mãos, agarrando-me pelos
cabelos e puxando-me o rosto na direcção do seu órgão erecto,
numa altura em que aligeirou o peso sobre mim, esquivei-me por entre
as suas pernas, voltei-me e caí sobre ele com a ferocidade de um
animal selvagem. Arranhei-lhe as costas, esmurrei-o, esgatanhei-o,
dei-lhe dentadas, puxei-lhe a barba, torci-lhe o pescoço. Acabei por
fazê-lo desabar de barriga para baixo sobre o colchão. Naquele
preciso instante, vi o tubo de escape que estava mesmo ali ao lado da
cama e achei que tinha valido a pena transportá-lo de casa em casa
durante todo aquele tempo só para me valer em semelhante aflição.
Agarrei-o com todas as minhas forças e desferi-lhe golpes atrás de
golpes. Sem pensar, sem hesitar, sem vacilar um segundo. O seu corpo
foi cedendo, amolecendo, vergando.
Saí
da cama, acendi a luz para ver o que se passava e verifiquei que o
tubo de escape executara com perfeição o seu ataque sobre a cabeça
do barbudo, golpeando-a, amolgando-a, rasgando-lhe o couro cabeludo
até aos miolos. Havia sangue nos lençóis encardidos. O monstro
jazia, imóvel.
5
Não
me preocupei em saber se o barbudo estava vivo ou morto. A diferença
seria pouca ou nenhuma. Ferido estava com certeza. De qualquer
maneira, durante os próximos dois ou três dias, ninguém se
preocuparia com o seu estado. Quem o visse não teria dúvidas de que
estava afundado no sono. As manchas de sangue confundir-se-iam com as
nódoas de sujidade que eram habituais nos lençóis de quem vivia na
casa.
Àquela
hora da manhã, só se ouvia os jogadores de cartas batendo com os
nós dos dedos no tampo da mesa da cozinha, entre alguns comentários
de ameaça ou desalento. Ninguém se terá apercebido da luta travada
no quarto de dormir. Se alguma coisa se ouviu, o mais provável era
concluírem que tudo não passara de uma refrega amorosa, o que não
era tão incomum como isso na residência que ocupávamos.
Não
fora por acaso que eu premeditara assassinar o barbudo quando o vira
estendido na banheira. Era corpulento, bonacheirão, pacífico e
simpático. Eu nem sabia o seu nome, mas por diversas vezes reparara
que tinha o hábito de me fuzilar com os olhos sempre que dava comigo
na cozinha, à saída de algum quarto ou da casa de banho. Todavia,
nunca se atrevera a dirigir-me a palavra. Devia ser tímido. Até
porque só me atacara a dormir. Provavelmente, enquanto eu passava
pelas brasas junto de Nat, viera deitar-se a meu lado e caíra no
sono, feliz por me ter perto de si. Depois, num impulso sonâmbulo,
pusera-se a beijar-me, dando origem a um combate que não estaria nos
seus intentos.
Fui
dar uma volta pela casa, para desanuviar. Passei pela cozinha, onde
me demorei alguns minutos a observar o jogo de cartas, entrei na casa
de banho, sentei-me na sanita, tentei organizar ideias. O cérebro,
porém, não respondia. Observava o lavabo, a banheira onde momentos
antes o barbudo dormia estendido, as toalhas encarquilhadas nos
dependuradores, o cesto de roupa suja, os sabonetes com restos de
cabelos, as pastas e escovas de dentes ao abandono.
Ergui-me
ligeiramente na sanita e vi a minha cara reflectida no espelho
besuntado por marcas de dedos. Não me reconheci. Eu era outra
pessoa. Tinha o rosto mais vincado do que o costume, olheiras, a
expressão pálida de quem não se sente feliz nem o seu contrário.
Tinha chegado a um ponto em que nada me dizia respeito. Não reagia,
a não ser que se metessem comigo. E, mesmo assim, quando respondia
era como se houvesse uma segunda alma dentro de mim. Uma alma
desligada da minha história, do meu percurso, da minha vontade.
As
instalações que eu passara a construir e conceber de acordo com os
movimentos de quem vagueava pela casa haviam-se tornado no meu novo
universo.
O
que me distinguia dos outros era o estado de quase permanente
vigília. Se dormia, era pouco. Não mais de uns breves minutos, para
descansar a cabeça. E até nesses curtos instantes o meu espírito
estava sempre alerta, imaginando estruturas, não já de objectos,
que eu acabara por rejeitar de todo, mas de gente que se pretendia
viva e que eu chegara a considerar sob o meu domínio.
De
uma certa forma, eu desejava que o barbudo tivesse sucumbido aos meus
golpes, dando-me oportunidade de vê-lo morto, transformado em coisa,
mas sabendo, ao mesmo tempo, que um dia fora pessoa.
Era
uma experiência nova para mim. Replicara de forma desmesurada ao seu
ataque por me sentir protagonista de uma instalação viva, que
ninguém controlava a partir do momento em que eu me integrara nela.
Antes,
eu concebia, imaginava, executava, planeava, corrigia, mirava do
exterior. Agora, estava do outro lado. Do lado dos objectos, do lado
dos corpos (em movimento ou desfalecidos), das forças que os
comandavam, decidiam por eles, orientavam, manipulavam. Não conhecia
essas forças, mas tinha noção da sua existência. E sabia que eu
também estava nas suas mãos. O meu poder esvaíra-se. Como tal,
reforçara-se.
Voltei
para a cama. Estendi-me entre Nat e o barbudo, que se encontrava na
mesma posição em que eu o deixara, depois de o abater com o tubo de
escape.
Encostei-me
a Nat, de mansinho. À minha direita, o barbudo parecia um elefante
de pedra. Passei-lhe a mão pela face. Estava gelada. Deixei-me estar
de olhos no tecto, fitando os primeiros raios da claridade matinal
que se infiltrava pela janela do quarto. Nat aconchegou-se ao meu
calor, que ia aumentando, à medida que o do barbudo se extinguia.
6
No
dia seguinte, ninguém deu pela falta do homem que me atacara durante
a noite e que continuava estendido na cama como se nada lhe tivesse
acontecido. Nat levantou-se antes de mim e olhou-o, mas não passou
disso. Deve ter estranhado mais o número de pessoas com quem tinha
dormido do que propriamente o lastimável estado em que se encontrava
o barbudo.
Saí
da cama logo a seguir a ela. Fui até junto da porta da casa de banho
perguntar-lhe se desejava café, uma amabilidade que não me era
habitual. Respondeu que sim, de uma forma sonoramente arrastada,
levando-me a concluir que estava a lavar os dentes.
Apeteceu-me
entrar, para lhe ver a cara, para me certificar de que realmente não
se apercebera do que eu fizera ao barbudo. Mas não me atrevi. Quanto
mais natural fosse, menos daria nas vistas.
Eram
onze horas da manhã. A casa estava mergulhada em silêncio. Toda a
gente dormia, ou já tinha saído. Eu não sentia qualquer
preocupação pelo que acontecera na noite anterior. Restava-me
assistir ao curso dos acontecimentos, dos quais fazia parte e cuja
evolução não dependia de mim. Tinha a certeza de que desapareceria
no momento oportuno. Mais tarde ou mais cedo, escaparia, sumiria,
daria o fora. Só não sabia para onde. A minha vida não acabaria
ali, entre destroços apodrecidos.
Pelos
meus cálculos, teria ainda um dia ou dois, em segurança. Um, pelo
menos.
Servi
o café a Nat, que se deixou cair estremunhada sobre uma das
cadeiras. Estava pálida, absorta, descontraída.
Sentes-te
bem? perguntei.
Ela
respondeu afirmativamente com a cabeça, sem me olhar. Nisto, entrou
Don. Murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido, pegou-lhe na mão e
levou-a para um dos quartos, dando-lhe tempo apenas de se voltar e
dizer, através de um fugaz sinal de olhos, que gostaria de falar
comigo.
Ouvi
gemer durante toda a tarde. Um gemido rouco e abafado, que tanto
podia ser de homem como de mulher. De vez em quando, Don soltava uns
gritos, que se sobrepunham aos gemidos, voltando estes a seguir, em
cadência irregular, mas persistente.
Não
tive coragem de ir ver o que se passava. Os gemidos podiam ser de
Nat, de Don, ou de qualquer outro. Mas também podiam ser do barbudo,
embora me parecesse pouco provável que ainda estivesse vivo.
Ao
fim da tarde, Bill entrou, acompanhado de Ric. Nenhum deles pareceu
ligar ao ruído de fundo que ia enchendo a casa, hora após hora,
como uma música que entrava no ouvido sem descolar.
Perguntaram-me
se queria jogar às cartas. Respondi-lhes que não estava com
disposição. Puseram-se os dois a treinar formas habilidosas de
misturar os baralhos. Depois, Bill ensinou a Ric alguns truques.
Às
nove da noite, voltei para a cama, onde o barbudo continuava
exactamente na posição em que eu o deixara de manhã. Os outros
dois, que haviam passado a noite do lado esquerdo de Nat, dormiam,
ainda, ouvindo-se as suas respirações pesadas e lentas.
Deitei-me
ao pé do barbudo, abracei-o e pus-lhe uma das pernas por cima, como
se para dar a entender que tudo decorria bem entre nós. Estava duro
e frio como um tronco de árvore.
Algum
tempo depois, Nat veio estirar-se junto de mim. Entrelaçou a sua mão
na minha e obrigou-me a dar-lhe atenção.
Não
sei se adormeci, ou se realmente vi o que se passou, mas a certa
altura um dos corpos que estava ao lado de Nat passou a mão pelos
seus cabelos, agarrou-a, puxou-a para si e desatou a abrir-lhe a
camisa.
Fiquei
sem reacção. Nat tinha-me sido roubada num ápice, sem oferecer
resistência. Ouvi-a sussurrar:
Dave...,
Dave... e deixar-se ir.
As
pernas de um e de outro tocavam-me, por vezes, fazendo-me estremecer.
Eu ouvia o batimento dos seus corações. Nat chegou a dar-me a mão
enquanto se contorcia sob o corpo de Dave. Dava-me a mão e
apertava-me como se precisasse de mim para a salvar. Cravava as suas
unhas nos meus pulsos e dizia: Vem, vem... deixando-me na
dúvida sobre se falava com Dave ou comigo.
Apeteceu-me
reavê-la, reapoderar-me da sua mão, mas Nat foi ainda entregar-se
ao colega de Dave, que estava na outra ponta da cama.
Quando
se desfez dele, receei que o barbudo também constasse dos seus
planos. Mas Nat estava exausta. Mesmo assim, logo que recuperou as
forças, levantou-se, saiu do quarto e foi entregar-se noutros
braços.
7
Passei
a noite em claro. Por mais do que uma vez, tive a impressão de que o
barbudo respirava a meu lado. Cheguei mesmo a notar que uma das
pontas do lençol desprendido vibrava sob o efeito do ar ténue que
lhe saía das narinas. Não fiz o que quer que fosse para verificar o
seu estado. Mantive-me ao comprido na cama durante as horas infindas
em que a escuridão arrastou o peso das suas grilhetas pela casa.
Eu
queria partir de cabeça levantada, pela manhã. Se fugisse durante a
noite, levantaria suspeitas.
Logo
que a claridade surgisse e os primeiros ruídos de passos ecoassem
pelas divisões da residência, eu levantar-me-ia, com ar natural,
daria uma volta pelos quartos a fim de olhar pela última vez a minha
instalação de farrapos humanos e sairia porta fora, sem dar nas
vistas, como quem vai à esquina comprar o jornal. Deixaria atrás
toda a minha roupa, as grades de leite, as lâmpadas, o banco de
jardim, a mobília de troncos, o tubo de escape. Desapareceria como
um fumo que se esvai.
Calculei
tudo ao pormenor. Nada poderia falhar. Nem um tom de voz, ou um
movimento de dedo.
Vivia
dentro de uma estrutura fechada construída por mim, dentro de uma
teia sem brechas onde nem o ar entrava, mas nunca deixei de imaginar
que haveria uma saída para a superfície mais espessa. Uma saída
simples como a brisa insignificante que se deixa confundir com o raio
de luz rente ao qual a cortina da janela ondula. Avançaria como uma
fera sobre cacos de vidro, sobre estilhaços, sobre restos de alma.
O
carro, que eu não utilizava há várias semanas, seria o instrumento
a que eu recorreria para escapar, mais uma vez. Já nem tinha a
certeza de saber conduzir. Não me lembrava do sítio da ignição,
nem da posição dos pedais. Só a chave estava garantidamente
comigo. Nada de velocidades, nada de provocações, nada de riscos.
Seguiria
pela auto-estrada, pé ante pé, quilómetro atrás de quilómetro,
curva após curva, até me perder nas brumas do horizonte onde as
cidades tombavam contra os céus, multiplicando-se em túmulos que se
reerguiam sobre ossos e cinza.
Às
sete da manhã, não resisti e saí da cama. Fiz mais barulho do que
era costume, a fim de que não restassem dúvidas sobre os meus
passos dentro de casa.
Ninguém
me seguiu o exemplo. Nat estava nua, enrolada em Sus. Parecia uma
serpente. Ric dormia no meu banco de jardim, com ar de mendigo
entrincheirado na manhã fria. Não liguei aos outros. Nem ao
labirinto onde os seus nomes se desencontravam.
Abri
a porta da rua. Detive-me por alguns momentos, a ver se alguém me
vinha no encalço, pressentindo, num último instante, o meu destino
imediato.
Mas
a instalação não acabava ali. Havia ainda a estrada, o longo
caminho até ao outro lado, onde os prédios rangiam nas estruturas,
à beira de ceder.
A
cidade balouçava ao vento quando os meus olhos esvoaçaram sobre a
neblina matinal que me guiaria os passos. Atravessei a rua e caminhei
ao longo de dois quarteirões até chegar ao sítio onde me recordava
de ter estacionado o automóvel num fim de tarde do mês anterior.
Lá
estava ele. Entrei e arranquei, com o maior dos vagares, por entre os
veículos que corriam estremunhados através da sombra compacta dos
edifícios.
Atravessei
a ponte e continuei em frente, ultrapassando placas atrás de placas,
que apontavam direcções, nomes de lugares, caminhos alternativos.
Manter-me-ia
ao volante durante horas e dias, sem sair da rota em que entrara, até
que a névoa da minha última instalação deixasse de me perseguir,
agarrada ao pára-choques do veículo como um cadáver que se ia
desfazendo sobre o asfalto.
Sempre
que me detinha com o fim de encher o depósito de combustível,
aproveitava para verificar o estado dos filamentos que se me haviam
dependurado no carro e que o alcatrão se encarregava de decepar com
persistência e método.
Dias
depois, a estrada ondulava à minha frente por dentro de uma
claridade vaga que me fazia perder a noção das distâncias. O carro
mantinha uma velocidade tão estável que a certa altura parecia ter
parado no tempo.
Senti
uma pressão nos ouvidos e um ligeiro zunido que me acompanhava na
viagem sem solavancos ao longo de quilómetros sem fim.
Certa
manhã, deparei-me com uma invasão de insectos que esvoaçavam
endoidecidos dentro do automóvel, colando-se-me à pele e à roupa
suada.
Insectos
era o sinal que eu esperava. O sinal que desconhecia, mas que
esperava, pacientemente, desde que abandonara a casa onde dormira ao
lado de cadáveres tão cadáveres que até respiravam.
Os
insectos queriam dizer que chegara a hora de mudar de rumo, que o
perigo já não era tão ameaçador, que eu devia tomar outra
direcção e procurar guarida, algures.
Não
tive a certeza de perceber bem o que se passava, mas continuei. Sem
me preocupar com as instruções da placa que apontava a saída,
abrandei, guinei para a direita, fiz-me à curva, parei no semáforo
vermelho, esperei, arranquei no verde, sempre com os insectos zunindo
ferozmente à minha volta.
Prossegui
por uma artéria secundária. Ao fim de pouco mais de um quilómetro,
encontrei ligação a um caminho de terra. O destino metia-se-me
pelos olhos dentro. Segui-o sem hesitar. Acelerei. Desapareci sob um
rasto de poeira.
FIM